quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Quatro resenhas

 O sorvete (Contos de Aprendiz) - de Carlos Drummond de Andrade.


Dois garotos, o narrador, de onze anos, filho do coronel Juca, e seu amigo, Joel, de treze anos, de pequena cidade do sertão, chegam à cidade grande, de cinquenta mil habitantes. Cidade grande de cinquenta mil almas? Esquecia-me: a história, lembrança de um episódio que o filho do coronel Juca relata trinta anos depois, passa-se no ano 1.916. Naquela época, era uma grande cidade a de cinquenta mil habitantes.

Dá-nos a conhecer Carlos Drummond de Andrade, um prosador refinado, poético, que muito me agrada, num conto, narrado em primeira pessoa, o narrador a buscar o tempo perdido, aspectos urbanos comuns a todas as cidades de então, seu comércio, os hábitos de seu povo. São as descrições exíguas de informações, mas não irrelevantes; são as suficientes para ambientar o leitor: lá está o cinema, e o parque, onde há um gavião-de-penacho, o colégio, as casas de parentes dos dois jovens protagonistas, e a confeitaria, onde, certo domingo, serviu-se sorvete de abacaxi, delicioso, especialidade da casa. Tinham os dois garotos, o herói da história, tímido e xucro, e seu amigo, Joel, resoluto e determinado, o hábito de, antes de, aos domingos, saírem, a passeio, do colégio, do qual eram internos, planejarem o passeio, o itinerário à perfeição elaborado, e o seguiam à risca, porque era o dinheiro curto. E foi no domingo em que a confeitaria servia sorvete de abacaxi que a história se detêm: os dois garotos seguiam o passeio planejado na véspera, até o momento em que se depararam, à frente da confeitaria, com um quadro-negro, no qual, escrito a giz branco, lia-se: "Hoje. Delicioso sorvete de abacaxi. Especialidade da casa. Hoje." Os garotos, com água na boca, babavam de desejo de comer sorvete de abacaxi, iguaria que ambos, do sertão chegados à cidade, jamais haviam degustado. Aventaram o desejo de comerem sorvete. Mas, e o cinema? O dinheiro era escasso: tinham os garotos de optarem: ou o cinema, ou o sorvete. Foram ao cinema. E enquanto assistiam às imagens em movimento, na sala escura, pensavam no sorvete de abacaxi, e no sorvete pensando mal atentaram para as cenas que a película lhos exibia. E não se contiveram: foram à sorveteria, e serviram-lhes sorvete de abacaxi. E mais não digo, para não estragar a surpresa do leitor. Não quero, assim se diz hoje em dia, "dar spoiler".

Carlos Drummond de Andrade narra a aventura, com muita sensibilidade, e simplicidade poética em sua prosa, dos dois garotos, e a encerra com o toque de mestre que é o seu. Em tal reminiscência, passados trinta anos, o narrador, através do tempo a ciceroneá-lo o escritor, reconstrói uma cena - que para outros seria insignificante - que pertence à sua vida, cena que fez parte de sua história, cena que participa de sua formação enquanto pessoa, enquanto homem. E não é a vida de todo homem uma sequência sem fim, que encontra o fim com a sua morte, de pequenas coisas, de pequenos acontecimentos? Carlos Drummond de Andrade não se ocupa de buscar, na vida de seus personagens, para apresentá-los aos leitores, um episódio grandioso, épico, trágico, digno dos heróis gregos, dos trágicos shakesperianos, dos aventureiros que singravam os sete mares, não. Ele, e com singeleza admirável, conta a ida deles a uma confeitaria, para chuparem sorvete de abacaxi. E com que graça o faz!


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Os Restos Mortais - de Fernando Sabino


É Fernando Sabino escritor perspicaz, sutil, que sabe, intui, sente, com sua visão aparentemente estreita (e quem acredita que é estreita, engana-se) da sociedade, e das pessoas, as profundezas da alma dos homens, e com seu talento literário traduz, para uma linguagem simples e um estilo graciosamente divertido, o que faz dos contos dele, dir-se-ia, teatro de costumes, e dele um herdeiro de Arthur Azevedo, Martins Pena e França Júnior (desconheço-lhe a biografia, e tampouco suas leituras, para dar com certeza que é ele devedor aos três escritores citados), a sofisticada simplicidade do ser humano, de suas relações sociais, de suas suscetibilidades, de suas simultaneamente grosseiras e refinadas vicissitudes.

O humor de Fernando Sabino está na descrição de tipos humanos, e suas relações, e seus encontros e desencontros, que, de outros escritores, sisudos e desprovidos de espírito alegre, passam despercebidos, a inspirá-lo o que é dele, o que nasceu com ele, o talento de ver as coisas humanas pela perspectiva da graça; mesmo que ele não queira fazer humor, não conscientemente queira ver o lado risível das coisas humanas, lhe é inescapável, incontornável a visão bem-humorada, a leitura jocosa da vida humana em sociedade.

É Fernando Sabino escritor sensível. Neste conto, ou novela, Os Restos Mortais, de umas quarenta páginas, ele narra os contratempos que tem de enfrentar, após a morte de Galdino, um homem de só um olho bom, epiléptico, oligofrênico, o doutor Laerte, a esgotar-se com os cuidados, que lhe exigem os órgãos públicos, com, do morto, a autópsia, o enterro, o atestado de óbito. Sucedem-se os apuros que o perturbam, e as confusões: ora o cadáver do Galdino é trocado pelo de outro homem, ora o médico que atendera Galdino na véspera da morte deste nega-se a fazer do falecido a autópsia, ora o cadáver desaparece, ora falta água no hospital. Enfim, a aventura do doutor Laerte é, dir-se-ia, puro nonsense, mas disparatada não é. Com graça e humor, e sensibilidade, Fernando Sabino descreve os personagens, os capítulos a se sucederem num ritmo ligeiro, sem que seja apressado, até o desfecho, quando, num colóquio harmonioso entre o doutor Laerte e seu pai, às mãos de ambos copos com Old Parr, revela-se a origem de Galdino, que tanto lhes ocupava os pensamentos.


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O Visconde Partido ao Meio - de Italo Calvino


É uma fábula? É uma alegoria? É um conto fantástico? É um conto grotesco e arabesco? É uma novela de terror? É uma novela de horror? É um conto folclórico? O que é Visconde Partido ao Meio, do escritor italiano Italo Calvino? Uma obra em cuja receita há fábula, alegoria, fantasia, o grotesco e o arabesco, e terror, horror, e folclore, e outros ingredientes novelísticos que o fazem um primor da literatura moderna. Não é prudente classificá-lo numa escola literária unicamente, tampouco dá-lo como uma peça datada. É um romance realista, sem que o seja; realista, porque retrata o ser humano sem idealizá-lo, e não é realista porque possui a narrativa elementos fantásticos, comuns às obras de Washington Irving e von Chamisso, e às folclóricas, às de fábulas.

É o narrador das aventuras e desventuras do Visconde Medardo di Terralba, o herói da novela, o sobrinho dele; e o relato conta eventos que se sucederam quando era o narrador um garoto de uns oito anos de idade.

Está o leitor se perguntando, curioso, intrigado: "Visconde partido ao meio?! Que história é esta?!" E eu, que não desejo que o leitor se perca, se perturbe, com a questão, já lhe digo: O Visconde Medardo di Terralba, mal entrado na vida adulta, e seu fiel escudeiro, Curzio, numa época em que os cristãos, além de enfrentarem a peste, batiam-se contra os turcos, alistaram-se no exército cristão, rumaram à Boêmia, foram ao campo de batalha. E tão impetuoso! tão inconsequente! o visconde, que ele salta à frente, de espada em punho, e peito aberto, de um canhão, e é alvejado no peito, cindindo-se em dois. E com a metade de si, e inteiro assim reduzido à metade, regressa à sua terra, onde inferniza o povo. A metade que lhe restava era o mal encarnado, inteiramente má. O Visconde Medardo di Terralba condena à morte, na forca, bandidos, e suas vítimas, e caçadores, e os guardas; e camponeses, que ao castelo não haviam recolhido a devida porcentagem da colheita; e perturba Pamela, uma pastora, por quem se apaixonou; e condena Sebastiana, que lhe era querida ama, ao leprosário Aldeia do Prado do Prego. Corta o visconde tudo pela metade, flores, animais; incendeia seu castelo, e celeiros, e casas. As suas maldades horrorizam os do povo, que lhe querem a morte, mas, impotentes, nada lhe fazem para dar-lhe fim. Vivem os do povo sob o jugo do maldoso, maléfico, demoníaco Visconde Medardo di Terralba, melhor, da metade, que era inteiramente má, dele. Vivem perdidos; os infortúnios se lhes multiplicam. É-lhes impossível viverem sob o jugo de um visconde tão mal, tão hediondo, tão desumano. Ser-lhes-ia de grande alegria se, em vez da metade má do Visconde Medardo di Terralba, sobrevivesse a metade boa, que, infelizmente, estava morta. Morta?! Um dia, a todos surpreendendo, aparece viva a outra metade do visconde que havia sido partido ao meio. E ela se revela boa, inteiramente boa, antagonista de sua outra metade, a má. Agora, os do povo têm de se haver com dois viscondes, o que é, sendo a metade do visconde Medardo di Terralba, inteiramente mal, e o que é, dele sendo a outra metade, inteiramente bom. Dir-se-ia que uma das metades dele encarna o mal absoluto, é o mal em estado puro, e a outra o bem absoluto.

A galeria de personagens constituem um panorama, alegre e divertido, dramático e grotesco, do povo que vive à sombra do Visconde Medardo di Terralba, um microcosmo, descrito com alegria e jocosidade, da sociedade humana. Estão vivos, e Italo Calvino criou-os para animar o leitor, ouso dizer, o visconde Aiolfo, avô do narrador, um ancião recluso que vivia num viveiro; Fiorfiero, um bandido; o mestre Pedroprego, carpinteiro e albardeiro; o doutor Trelawney, médico que não exerce a medicina, sempre ocupado com descobertas científicas, caçador de fogo-fátuos, hábil no vinte-e-um, médico de bordo no navio do Capitão Cook; a ama Sebastiana; Galateo, o leproso; o velho Ezequiel, huguenote, que estribilhava "Peste e carestia!"; Esaú, um garoto, que, ainda não havendo completado dez primaveras, já era um ladrão respeitável; a pastora Pamela; e o protagonista Visconde Medardo di Terralba, e Curzio. E o narrador, que, na sua infância, contava histórias para si mesmo e brincava de assustar-se.

É o Visconde Partido ao Meio (no original, italiano, Il visconte dimezzato), uma alegoria, uma fábula, um conto folclórico, e fantástico, e de terror, e grotesco. Permite inúmeras interpretações, e pede mais de uma leitura, porque é divertido, e porque, embora aparente, em sua tessitura, despretensão de Italo Calvino, trabalha uma questão que mexe com os neurônios dos maiores filósofos: O que é o ser humano?


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História do Império - de João Camilo de Oliveira Torres


Nos anos 1960, a Distribuidora Record publicou uma série de livros, para jovens, e um dos escritores convidados a escrever um volume, e que muito se felicitou com o convite, ciente da importância da consciência histórica de um povo, que, unicamente conhecendo seu passado, pode construir o seu futuro, foi João Camilo de Oliveira Torres, consagrado historiador brasileiro, um dos maiores que o Brasil já conheceu, autor do monumental, e premiado, A Democracia Coroada, profundo conhecedor da história do Império, momento histórico ao qual dedicou toda sua vida, admirador dos imperadores - e neste pequeno, e valioso, História do Império, magro, e bem nutrido, volume, de um pouco menos de cem páginas, ele não cuida de conter sua admiração por Dom Pedro II, e outras figuras imperiais, e a ele rasgar elogios, os de um autêntico apaixonado por tal personagem, raro exemplar de homem público pobro e que amava o Brasil.

Conta a edição com ilustrações, em preto e branco, com arte de Armando Pacheco Alves, de páginas inteiras, que retratam, dentre outras personagens do Império, o Príncipe D. João, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Dom Pedro II, Duque de Caxias, Joaquim Nabuco, D. Isabel. Tem vinte e um capítulos.

É o estilo do autor direto, limpo, claro, enxuto, sem ser desgracioso, raquítico.

Fala o autor de Martim Afonso de Souza, e das Minas Gerais, e de D. Maria I, de Portugal, de sua morte. E da Regência do Príncipe Dom João; e da ação imperialista de Napoleão, que o fez transferir, de Lisboa, para o Rio de Janeiro, a capital do Império Português, para as terras brasileiras, além da Família Imperial a tiracolo, trazendo as suas tralhas. E que tralhas! Eram tralhas imperiais. De imenso valor. É, agora, o Brasil a sede da Monarquia Portuguesa.

A presença, em terras brasileiras, da Família Real, elevou o Brasil, que agora não era uma possessão portuguesa ultramarina, à parte integrante do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o que descontentou muitos portugueses. Sucederam-se as revoluções, que obrigaram D. João VI a regressar a Portugal, aqui em terras brasileiras deixando seu filho, o Príncipe Dom Pedro, Regente e Lugar-Tenente de Sua Majestade, que veio a se tornar, impetuoso que era, um herói nacional. Casa-se Dom Pedro, o primeiro do Brasil, com D. Leopoldina, e enfrenta as Cortes Gerais, cuja política, se vitoriosa, poderia vir a dividir o Brasil em uns cinco países, que, independentes, seriam servis a Portugal, desmembrando-se, assim, o grande filho americano de Portugal. Muitos eram os deputados inimigos de Dom Pedro I, que, diante das adversidades, o Brasil na iminência de se matar em guerras fratricidas, não lhe restando outra alternativa, para conservar íntegro o Brasil, deste declarou, às margens do Ipiranga, no dia 7 de Setembro de 1.822, a Independência, para os brasileiros entregando um ultimato: ou a independência do Brasil, ou a morte. E é Dom Pedro I aclamado Imperador. E ele enfrenta inúmeros aborrecimentos, e contratempos sem fim. Não foi o seu reinado isento de ameaças à integridade territorial brasileira. Sucederam-se as revoltas. A Confederação do Equador quase veio a dividir o Brasil em dois, e um de seus líderes, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, juntamente com outras personalidades de menor expressão, foi condenado à morte.

Se era novo o país, o país tinha de ter seus símbolos, sua bandeira, seu hino, e deste, que é o da Independência, o Imperador Dom Pedro I escreveu a música, e deixou a cargo de Evaristo da Veiga a composição da letra. Uma Constituição para o Brasil foi escrita, a de 1.824.

E sucederam-se as revoltas.

E morre D. João IV. Seu filho, o Imperador do Brasil, assume o título de Rei de Portugal, e deste abdica em benefício de D. Maria da Glória, sua filha. Outros episódios da vida do Rei Cavaleiro sucedem-se num roldão, até que, enfim, ele entrega o trono ao menino, seu filho, que ainda vestia fraldas, e que - a maioridade antecipada com a destituição do regente Araújo Lima - ainda moço imberbe, viria a se tornar o Imperador Dom Pedro II.

O Império brasileiro segue a enfrentar incontáveis dificuldades: a guerra dos Farrapos, a guerra do Paraguai, revoltas inúmeras, e outros males que a natureza brasileira impunha. Para enfrentá-los, conta com o General Osório, o Duque de Caxias, o Almirante Tamandaré, o Conde d'Eu, e outros homens corajosos, ilustres, que não fugiram às suas responsabilidades históricas: encararam-las com denodo incomum. Enfrentaram os heróis brasileiros o ditador Rosas e o ditador Francisco Solano Lopez, e dos embates saíram vitoriosos.

Enfrenta o Brasil crises e crises e crises, o trabalho escravo, o federalismo, a política para se conservar a integridade nacional em harmonia com a descentralização administrativa, os entreveros parlamentares entre o Partido Conservador e o Partido Liberal, que de nenhum jeito se bicavam, tais quais gato e rato, e a Questão Christie, que chegou a bom termo.

É o livro acessível aos leigos, aos jovens para os quais João Camilo de Oliveira Torres o escreveu, às crianças. A linguagem é simples, e bem-humorada, de um talentoso contador de histórias - e é João Camilo de Oliveira Torres um ótimo contador da História do Brasil.

Para encerrar esta resenha, direi algumas palavras, poucas, do último capítulo, o 21, cujo título é, como não podia deixar de ser, "A Abolição". Neste, conta João Camilo de Oliveira Torres: com a Proclamação da República, toda a Família Real foi obrigada a deixar o Brasil e todos os descendentes de Dom Pedro I proibidos de pisar em solo brasileiro, injustiça, esta, anulada pelo presidente Epitácio Pessoa; no Brasil se promulgou, ainda no Império, a Lei Eusébio de Queiroz, a Lei do Ventre-Livre, a Lei dos Sexagenários, e a Lei Áurea; em homenagem ao Papa Leão XIII muitos donos de escravos alforriaram seus escravos, e o Sumo Pontífice escreveu uma Encíclica aos Brasileiros; Dom Pedro II condecorava, com a Ordem da Rosa, quem libertava seus escravos; e os filhos de D. Isabel mantinham um jornal abolicionista, o Correio Imperial, e era André Rebouças, o engenheiro, mestre deles. Tais curiosidades pintam a Família Imperial com cores diferentes das com as quais a pintam os historiadores de hoje em dia, que em sua ânsia de denegrir a Monarquia não se vexam de reescrever a história brasileira sob o prisma de ideologias malsãs.

História do Império é um livro que se lê com agrado. João Camilo de Oliveira Torres, escrevendo para jovens um trabalho simples, singelo, não lhes sonega informações que lhes permitem compreender a complexa política brasileira, sempre às voltas com as suas revoluções, políticas separatistas, e divergências que não raro ficam a ponto de descambarem na anarquia. Em suma, para João Camilo de Oliveira Torres são inteligentes os jovens, para os quais o livro ele escreveu.

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