quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Dois contos

 Um Autêntico Afrodescendente.


Foi à noite, ao crepúsculo. O Sol ainda não havia ido de todo; e a Lua insinuava-se, tímida, a evitar os raios, que lhe feriam a pele, do astro-rei. A noite não caia; escorregava, lentamente, até que, enfim, iria, dali uma hora, e um pouco mais, assumir inteiro domínio do dia.

Estamos no bairro Caxinguelê, nas proximidades de um bar, o Bar do Pimenta, para o qual afluía um respeitável contingente de pessoas de todos os tipos e de todas as crenças, a constituir um microcosmo da sociedade brasileira. Viam-se, lá, o mulato, o mameluco, o cafuzo, o sansei, outros tipos, mistos de árabe e ucraniano, turco e índio, africano e chinês: uma variada multidão. Reunia-se, o que era comum, a nata da sociedade noctívaga do município, nas vizinhanças daquele estabelecimento, ponto de encontro de aristocratas e plebeus, e gregos e romanos, e palmeirenses e corinthianos, de todos o credos, após o encerramento do expediente de trabalho.

Esquecia-me: era uma sexta-feira, véspera de um final-de-semana prolongado. Muitos dos que estavam ali presentes, rumariam, naquela mesma noite, ou no dia seguinte, para Ubatuba e Caraguatatuba, e banhar-se-iam, ao Sol, até bronzearem-se, e queimarem-se, e nos dias seguintes, de regresso da viagem, contariam aos que ao litoral não foram, as aventuras, e exibiriam o corpo temperado de Sol e sal, a descascar-se.

Dentre os que lá estavam presentes, dois, Fernando e Carlos, são protagonistas da história que iniciamos a contar. E são quatro os personagens que animarão a nossa aventura. Os outros dois, Renato e Paulo, irão dar, e daqui não muito tempo, o ar de sua graça.

Após apossarem-se Carlos e Fernando cada um deles de uma latinha de cerveja, eles atravessaram a rua, distanciando-se da multidão barulhenta. E prosseguiram a conversa que haviam principiado logo ao se encontrarem no interior do Bar do Pimenta, e a interromperam assim que Carlos viu, indo na direção deles, Renato, que trazia consigo uma pasta sob o braço direito e à mão direita um copo de plástico com cerveja.

- Veja quem está chegando, Pequim - disse Carlos, indicando a esquerda de Fernando, atrás deste.

- Pequim é a vovozinha - retrucou Fernando, que se voltou para a direção que seu amigo lhe apontara. - É o mala-sem-alça do reino da cocada preta - disse, num tom elevado, para que aquele que deles se aproximasse o ouvisse.

Renato, ouvindo-o, fez-lhe um gesto obsceno, sorriu, acenou para alguém no outro lado da rua, e voltou-se para Carlos e Fernando. Mal havia se achegado a eles, Carlos perguntou-lhe:

- Perdeu-se por aqui, ô, corinthiano?!

Renato saudou-o, e saudou Fernando:

- E aí, Magno?! E aí, Pyongyang?!

- Pyongyang é a vovozinha, ô, filhotinho de cruz-credo - retrucou Fernando, sério.

Saudaram-se, com apertos de mãos, primeiro Renato e Fernando; depois, Carlos e Renato.

- Samurai ninja - disse Renato, enquanto cumprimentava Carlos -, você soube do Paulo?

- Que Paulo? - perguntou-lhe Fernando.

- O Troféu - respondeu Renato.

- O Marcão disse-me que ele foi hospitalizado - informou-os Carlos.

- Eu me dirigi a você, rei destronado? - replicou Renato, desafiador.

- Eu falei com você, ô, súdito, cidadão de baixa extração. Servo! - retrucou Carlos, igualmente desafiador, altivo.

- Vocês dois se amam - comentou Fernando, que perguntou: - Que história é essa de o Paulo haver se hospitalizado?! De que se trata?

- Disse-me o Luis, o da oficina - informou-lhe Renato -, da oficina do São Bento, que a Penélope lhe dissera que o Márcio para ela havia dito que o Paulo envolveu-se num acidente de moto.

- Não é de admirar - comentou Carlos. - Do jeito que ele corre, em ziguezague por entre carros e ônibus, é milagre ele ainda estar vivo.

- O anjo-da-guarda dele fez intensivo e extensivo de segurança particular - comentou Renato.

- Falando no diabo, vejam quem apareceu - disse Fernando, apontando para a sua direita. - O capeta em pessoa.

Renato e Carlos voltaram-se para a direção que Fernando apontara e viram deles se aproximando o personagem de quem os três amigos falavam.

- Ora esta! - observou Carlos, assim que deu com os olhos em Paulo. - Se o Paulo está hospitalizado, de quem é aquela figura feia e mal-acabada?

- É o espectro fantasmagórico do Alemão. - comentou Fernando.

- É um irmão gêmeo do Troféu. - observou Renato. - Tão feio quanto ele.

- É um avatar do Paulo - declarou Carlos. - Ele conta com um número perigosamente escasso de pixels por metro quadrado.

- Sejamos sinceros - pediu Fernando -, o Troféu não tem a cara do Deadpool?

- Nossa! - exclamou Carlos. - Você foi maldoso, Pequim.

- Pequim é a vovozinha - retrucou Fernando.

Paulo, sério, aproximou-se dos três, acenando-lhes. Carregava ao braço esquerdo, pendurado pela alça, um capacete. Assim que se chegou aos seus amigos, saudou-os, primeiro Renato, depois, Carlos, e, por último, Fernando.

- Beleza, Natão?!

- De boas, Troféu.

- Beleza, Carlinho?!

- Beleza, Alemão.

- Jóia, Japa?!

- Jóia, Paulo.

- Ô, Alemão - perguntou Carlos para o recêm-chegado. -, você não está morto?

- Morto?! Eu?! - perguntou-lhe, surpreso, Paulo. - Que eu saiba, não. Estou, aqui, vivinho-da-silva, diante dos olhos de vocês, não estou?

- Morto você não está - comentou, jocoso, Fernando -, mas cara de cadáver você tem.

- Cosplay de samurai - retrucou-lhe Paulo -, não abusa da sorte, não. A sua espada esta enferrujada, e eu tenho comigo um sabre de luz.

- Conte-nos o que se passou com você, ô, germano - pediu-lhe Carlos. - O Marcão disse-me que você estava hospitalizado. E o Renato acabou de nos dizer que a Penélope lhe dissera que você se machucou, e feio, em um acidente de moto.

- O pessoal gosta de boatos - disse Paulo. - Eu não me machuquei, e nem me feri em nenhum acidente. O que aconteceu foi o seguinte: Eu ia pela avenida JK...

- A do Juscelino, ou a do Kennedy? - perguntou-lhe Fernando.

- Qual deles era o brasileiro? - perguntou-lhe Paulo.

- O Juscelino - respondeu Renato, antecipando-se a Fernando.

- Então, foi na do outro, Japa. - respondeu Paulo. - Dizia eu: Eu ia, de carro, pela avenida JK, e vi, não muito distante de mim, um carro, de atravessado na JK, saindo da rua Bandeirantes, para entrar na rua Mata Atlântica...

- Mas é proibido - observou Fernando. - Quem sai da Bandeirantes é obrigado, ao cair na JK, seguir, por esta, para a esquerda, respeitando-lhe a mão. Não pode atravessá-la.

- Exatamente, Japa. - concordou Paulo. - Só que tem um porém: o idiota que dirigia o carro, achando-se muito esperto, quis pegar um atalho até o bairro São Lourenço, ou até o do Cogumelo, ou ao dos Argentinos; e foi aí que aconteceu o imprevisto. Passava, pela JK, um pouco à minha frente, e um pouco antes de passar pela saída para a Mata Atlântica, a moto, que colidiu com o carro que saíra da Bandeirantes. Eu vi a batida. Vi a mulher pular por sobre o carro.

- Não foi o carro que passou por sobre a moto? - perguntou-lhe Renato.

- Não - respondeu Paulo. - O paspalho que dirigia o carro já estava com o carro, no meio da pista, de atravessado, e a moto bateu-lhe, no carro, em seu lado direito, e não no motorista; e este merecia ganhar uma cacetada bem dada no lombo, para deixar de ser besta. A mulher que estava na moto desta foi cuspida, e voou por sobre o carro, e foi cair a uns dez metros de distância. Sorte ela estar de capacete; do contrário, ao beijar o asfalto, perderia todos os dentes da boca. Para a minha sorte, eu, que vinha devagar, pois eu saíra, poucos metros antes, da oficina do Tiquinho, pude frear a tempo de evitar o pior. Assim que sai do carro, fui até a mulher, que, caída, berrava de dor; esgoelava-se, a coitada. E tratei de acalmá-la, em vão, e chamei a ambulância. Para a sorte dela, uma ambulância passava pela rua Marechal Rondon, ali perto, e logo socorreu-a. Peguei do chão os pertences da mulher, entreguei-os para a paramédica. E a polícia chegou. A ambulância rumou ao hospital. Conversei com os policiais, que depois trataram de levar a moto à delegacia, para exame de corpo de delito...

- Exame de corpo de delito na moto?! - perguntou, rindo, Carlos.

- Você entendeu o que eu quis dizer, né, ô, chato-de-galocha?! - replicou Paulo. - Então, não complique.

- "Chato-de-galocha"?! - observou Renato. - Ainda se usa esta expressão?! Ela não caiu em desuso, não?

- Levaram os policiais a moto à delegacia, para a perícia. - prosseguiu Paulo. - Estão satisfeitos?! E preencheram o B.O., e conversaram com o motorista do carro. Eu fui ao pronto-socorro, onde fiquei, a colher notícias da moça acidentada, até que lá chegassem os pais dela.

- Disseram que você estava hospitalizado. - informou-o Fernando.

- Ô, Japa, não acredite em tudo o que você ouve. - sugeriu-lhe Paulo. - Eu não sofri sequer um arranhão. Acredite em mim. Você não acredita no que eu digo?! Você quer que eu me dispa, para que possa ver se há no meu belo e formoso corpo de macho alfa, hematomas, um hematoma que seja? Diga'í, Japa. Quer? Estou ao seu dispor.

- Poupe-me de ver coisa tão horrorosa. - disse-lhe Fernando. - Acredito em você. Acredite, Paulo, que em você eu acredito. Acredite. Sei que será difícil para você acreditar que eu em você acredito, mas, saiba, que eu acredito que você é capaz de acreditar que eu acredito...

- Pare de enrolação, japa nipônico, e vá treinar arte ninja - reprovou-o, jocoso, Paulo.

- Antes que eu me vá embora, Paulo - disse-lhe Fernando, sério, num tom severo, que lhe era incomum, o semblante sobranceiro, que lhe era desconhecido -, peço a você, encarecidamente, que jamais me chame de japa.

- Por quê?! - perguntou-lhe, ensimesmado, Paulo.

Renato e Carlos riram, e sobre a cabeça dos dois pairaram quatro sinais de interrogação e de exclamação, alternados.

- Por quê?! - perguntou-lhe, sério, contrariado, Fernando. - E você me pergunta porquê eu peço a você que não me chame, de agora em diante, de japa?! Não quero que você, Paulo, nem vocês, Carlos e Renato, me chamem de japa. Tenho uma boa razão para pedir, melhor, exigir, que vocês nunca mais me chamem de japa. Nem de japa; nem de Japa. Sabem qual é? Digo: eu sou afrodescendente.

Paulo, Renato e Carlos, que se conservavam atentos às palavras que Fernando lhes dirigia, e ele lhas dirigia num tom firme, peremptório, reprovador, abandonaram a seriedade que até então emprestavam ao semblante, e dobraram-se de tanto rir. Fernando, por sua vez, estampou na fisionomia ar impassível, e ao olhar aspecto petrificante, fitando-os de cima para baixo, a tranparecer a contrariedade e o desconforto que a reação deles às suas palavras lhe provocara.

- Afrodescendente, você, ninja oriental?! - falou-lhe Paulo, que intensificou as gargalhadas, e removeu de si, com o dorso da mão direita, as lágrimas que lhe escapavam, abundantes, dos olhos.

- Você está de brincadeira, né, Pyongyang?! - perguntou-lhe Renato. - É brincadeira!

- Ô, Pequim - disse-lhe Carlos -, se você é afrodescendente, eu sou kryptonianodescendente.

- Vocês estão rindo não sabem de quê - reprovou-os Fernando, sério, carrancudo; o seu ar de seriedade, a sua carranca, inspirava aos seus três amigos seguidas ondas de gargalhadas. Assim que eles se cansaram de gargalhar, ele prosseguiu, no tom de voz que usava anteriormente: - Sim, paspalhos. Tolos! Eu sou um afrodescendente, e dos autênticos, e dos legítimos. Corre pelos meus vasos sanguíneos sangue africano. Vocês conhecem, javardos, a minha árvore genealógica?!

- É um bonsai - disse, rindo, Paulo.

- Boboca! - reprovou-o Fernando. - Vocês não a conhecem. Não a conhecem. Não retrocederei no tempo até a era dos meus mais antigos ancestrais. Para apresentar a vocês a verdade, a verdadeira condição afrodescendente da minha constituição étnica, irei, numa curta viagem através do tempo, até a era dos meus avós, todos os quatro, que nasceram no Japão. É meu avô paterno, o senhor Yasunari, que eu e os outros netos dele chamamos de vovô Yasu, e é minha avó paterna, a senhora Sayaka, vovó carinhosa e meiga. E são meus avós maternos, os senhores Ryūnosuke, o vovô Ry, e Matsuo, a vovó Mamá, um doce de pessoa. Os pais de meus pais nasceram, os do meu pai, o vovô Yasu, em Tóquio, e a vovó Sayaka, em Yokohama; e os da minha mãe, o vovô Ry, em Kyoto, e a vovó Matsuo, em Osaka. Os vovôs Yasu e Sayaka, casados, do Japão mudaram-se para Moçambique, e na capital da antiga colônia portuguesa, Maputo, criaram raízes; e para outra antiga colônia portuguesa, Angola, do Japão foram os vovôs Ryūnosuke e Matsuo, que se instalaram em Luanda. Em Maputo nasceu meu pai, o senhor Shintaro; e em Luanda, minha mãe, a senhora Mitsuyo. Recebeu meu pai a nacionalidade moçambicana, e minha mãe a angolana. E meus quatro avós arrumaram as malas, depois de viverem, os pais do senhor meu pai, doze anos em Moçambique, e os da senhora minha mãe, quatorze anos em Angola, e vieram para o Brasil. E passaram-se os anos. E aqui, na nossa terra, o Brasil, terra em que se platando tudo dá, acidentalmente conheceram-se, ainda jovens, o garoto Shintaro e a garota Mitsuyo, que se apaixonaram à primeira vista. E casaram-se. E da união deles nasceram, primeiro, a minha irmã mais velha, Patrícia, depois, eu, que recebi o nome Fernando, e, por último, a minha irmã mais nova, Kátia. Ora, basbaques, que eu saiba Moçambique e Angola são países africanos. Meu pai, o senhor Shintaro, é moçambicano, portanto, africano; e a minha mãe, a senhora Mitsuyo, é angolana, africana, portanto. Resumo da ópera: minhas irmãs e eu,  brasileiros, e legítimos, pois, ao contarmos de 'um' a 'dez' falamos 'um', 'dois', 'três', 'quatro', 'cinco', 'meia', 'sete', 'oito', 'nove', 'dez', somos descendentes diretos de africanos. Correm em nossas veias sangue africano. Somos, e ninguém há de negar, minhas irmãs e eu, afrodescendentes. Entenderam, pacóvios?!

- Entendemos, japa nipônico, ninja e mestre samurai - responderam-lhe, em uníssono, Paulo, Renato e Carlos, que, mal concluíram a frase, e sob olhar severo, reprovador, de Fernando, gargalharam. Fernando conservou a fisionomia carregada o quanto pôde, e não pôde muito.


*


O Galo Cantor


Ontem, domingo, para mim um dia festivo. Para mim, e para o Francisco Chiquinho, o meu galo de estimação, que eu vi ainda em ovo, filho da Domitila de Castro, majestade galinácea de origem divina que presenteou o mundo com centenas de bípedes emplumados, muitos deles a me servirem e à minha família de refeição salutar.

Salvamos da panela, para preservarmos em nossa memória a lembrança daquela galinha que muito bem nos fez, falecida, há quatro anos, de causas misteriosas, um de seus descendentes, o meu querido Francisco Chiquinho, galo imperial, amigo-do-peito de Rui Barbosa, garnisé dos melhores que há no mundo, dono de uma prosa encantadora, elegantemente barroca, e do Barão do Rio Branco, leitão diplomático, e do José de Alencar, pato romântico, e do José Bonifácio, marreco, um intelecto fenomenal, de ar científico. É o meu amigo um portento de sua espécie. Seu porte, altivo; suas esporas, lâminas afiadíssimas. Suas penas reluzem ao Sol. Coroa-lhe a majestosa cabeça crista real. É majestoso. Sua robustez, a de um guerreiro viking. Tem em si a força da natureza. Ontem, no entanto, ao chegar, do trabalho, um pouco depois do meio dia, em casa, eu o vi a caminhar cabisbaixo, de olhar perdido, tristonho, desenxabido, a pontapear pedrinhas. Incomodou-me o caiporismo do Francisco Chiquinho. Coitado! Também pudera! Na quinta-feira, invadiu-nos, assim que meu filho varão abriu a porta, e, sem mais nem menos, sem o saudar com um "Bom dia.", sem pedir-lhe licença, a chácara um canzarrão monstruoso, que logo tratou de ir para cima da consorte do Francisco Chiquinho, a dona Joana Joaninha, galinha vaidosa e arisca, e, sem lhe dar chance de emitir um "có", fincou-lhe no pescoço os dentes, matando-a. Francisco Chiquinho assistiu à cena, impotente. Expulsamos da chácara o grotesco assassino da dona Joana Joaninha. E fomos consolar o viúvo. Foi triste. Respeitamos o luto do Francisco Chiquinho, de quem não apreciei, ontem, o ar sorumbático. Eu o entendia. Tinha ele razão de estar triste, eu sabia. Mas eu tinha de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para animá-lo. Lembrei-me que eu comprara, na véspera, sábado, ou na antevéspera, sexta, ou quinta, refrigerantes, cervejas, pão de alho, e carne. Eureka! Iluminou-se-me a lâmpada da inteligência. Eu, agora, sabia o que eu teria de fazer para tirar o Francisco Chiquinho daquela fossa. Ele estava muito deprê. Eu iria preparar-lhe um churras. Dei-lhe a notícia. E eu o ouvi me dizer: "Demorô." O meu amigo emplumado beberia cérva e refri. Que ele bebesse o que desejasse, e se animasse. Tratei, e logo, de preparar o churrasco. Com as minhas mãos de mestre-cuca, depositando em minha tarefa todo o meu amor pelo meu velho amigo, logo a conclui. E chamei-o. Tratamos, e sem moderação, de enviar para o estômago voraz, insaciável, carnes e mais carnes, cervejas e mais cervejas, refrigerantes e mais refrigerantes, pães-de-alho e mais pães-de-alho, e o que mais encontrávamos ao alcance, eu, da minha boca, o Francisco Chiquinho, de seu bico. Que churrasco! O melhor do mundo! O Francisco Chiquinho é bom-de-garfo e bom-de-copo. E nós, amigos, e amigos-do-peito, abraçamo-nos, e abraçamo-nos calorosamente. E cantamos, animados: "Chiquinho é um bom companheiro! Chiquinho é um bom companheiro!" E logo após este dueto, o Francisco Chiquinho, ô galo maravilhoso! meu amigo-de-longa-data, que eu conheci ainda em ovo, seu berço, cobriu-se com uma tira de pano, branco, que lhe assumiu a função de jaqueta e calça, envolveu os pés com tufos de algodão a imitarem sapatos, salpicou-lhe flores vermelhas e azuis e amarelas, à modo de lantejoulas, lambeu as asas e passeou-as pela crista, ajeitando-a, tornando-a escorrida sobre a cabeça, tirou do varal colares coloridos da senhora minha consorte, e as pôs ao pescoço, pegou de uma vassoura, e fazendo-lhe a vez de um microfone, revelou-se-me um cantor talentoso, versátil, e dançarino hábil, e imitador irrivalizado. Com o talento de um Fred Astaire, ele cantou, com voz simultaneamente rascante e melodiosa, Suspicious, executando-a numa imitação impecavelmente perfeita do Elvis Presley: "We're caught in a trap / I can't walk out / Because I love you too much, baby / Why can't you see / What you're doing to me / When you don't believe a word I say?" Impecável! Elvis redivivo. Elvis não morreu! Vibrei de emoção ao ver o meu amigo a cantar uma canção que fez a fama do Rei do Rock. Que talento invejável o do meu amigo Francisco Chiquinho! Assim que encerrou a sua perfomance, tratou de retirar de si as tiras de pano, os tufos de algodão, os colares, despojou-se da figura do cantor americano, que não morreu, e assumiu ar grave. Na expectativa, curioso, perguntei-me que surpresa ele me reservava. Surpreendeu-me o Francisco Chiquinho. Com voz enrouquecida, ele pôs-se a cantar: "Não posso ficar nem mais um minuto com você / Sinto muito amor, mas não pode ser / Moro em Jaçanã." Diante de mim, o Adoniran, o nosso querido Adoniran Barbosa, a cantar um dos seus maiores sucessos. Eu o ovacionei. Amo o Adoniran. Pela primeira vez na minha vida eu tinha diante de meus olhos o meu ídolo. Francisco Chiquinho encerrou a canção. Pedi-lhe biz; e ele não se fez de rogado. Com um sorriso fraternal, cantou-me uma vez mais Trem das Onze, e ao encerrá-la, cantou, sem perda de tempo, e com igual desenvoltura, Saudosa Maloca. Uma vez mais, eu o ovacionei. Eu o aplaudi, até doer-me as mãos. Levei os dedos à boca, e assobiei, e assobiei, e assobiei. Não precisei pedir-lhe biz, pois ele me ouvira os pensamentos, que gritavam, e os gritos alcançavam os ouvidos de quem, naquele momento, estava em Atenas, e cantou, uma vez mais, a canção. Ao encerrá-la, foi à mesa, pegou de seu copo, então vazio, e pediu-me que eu o enchesse; e eu lho enchi com o mais puro malte, néctar dos deuses, néctar que fazia a delícia do engraçadíssimo Mussum. E o Francisco Chiquinho emborcou o copo, e virou para dentro da goela toda a bebida que nele havia, esvaziando-o de um só gole. Largou a vassoura, pôs sobre a cabeça um dos barquinhos de papel de meu filho mais novo, e, movendo as mãos como se manuseasse uma sanfona, soltou, num vozeirão que eu jamais lhe suspeitara, bravo, forte, exibindo força telúrica, como se o chão o alimentasse: "Quando oiei a terra ardendo / Qual fogueira de São João / Eu preguntei a Deus do céu, uai / Por que tamanha judiação?" Maravilhoso! Bravo! Meu Deus! Emocionado, eu ouvi o Luis Gonzaga a cantar a música que me fez evocar a terra dos meus avós e vir lágrimas aos meus olhos. Quantas vezes eu não ouvi meu avô a cantar, nostálgico, Asa Branca! Quantas!? E aos olhos vieram-me lágrimas ao ouvir Francisco Chiquinho, com a voz do Rei do Baião, a cantar os trechos "Que braseiro, que fornaia / Nenhum pé de prantação! Por farta d'água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão", e "Adeus, Rosinha / Guarda contigo meu coração", e "Espero a chuva cair de novo / Pra mim vortar pro meu sertão." Emocionei-me. Lembrei-me de meu avô, que há quatro anos Deus levou. Abraçou-me Francisco Chiquinho ao ver-me entristecido. E beijou-me, carinhosamente, a testa. Encarregou-se de de mim afugentar a tristeza que a canção me inspirara. E o que ele fez? Cantou. E qual música ele cantou? Agora, sem o barquinho de papel sobre a cabeça, passou no rosto carvão, pintando barba e bigode, amarrou ao ventre um travesseiro, e encheu o peito. Que surpresa me reservava o meu velho amigo? Com a voz dos trovões, cantou, de Rossini, Figaro. Assumiu ele as dimensões do admirável Pavarotti. Cantou Figaro! A imitar Pavarotti! É um tenor o Francisco Chiquinho. Ele mandava ora um lá, ora um ré, ora um fá, ora um sol, ora um si. Sei lá eu quantas e quais são as notas musicais. Sei, apenas, que o Francisco Chiquinho é um tenor, e dos melhores que já ouvi. Que portento! "Largo al factotum della città / Largo! La la la la la la la la! / Presto a bottega che l'alba ì già / Presto! La la la la la la la la!" Não me contive. Sai a, batuta à destra, partitura diante de meus olhos, reger, tal qual von Karajan, a orquestra. E chegou Francisco Chiquinho ao "Ah' bravo Figaro! / Bravo bravíssimo! / Bravo! La la la la la la la la!"; e eu a rodopiar em sentido horário, o mundo a girar em sentido anti-horário, segui, conservando-me, milagrosamente, em pé, até o "Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro", e fui ao chão, a sorrir, a cantarolar. Ajudou-me a me levantar Francisco Chiquinho. Em pé, o mundo a girar ao meu redor, pedi ao meu amigo nova canção, e ele vêm-me, para a minha alegria, com o Funiculì Funiculà. Ao ouvir-lhe da boca as primeiras palavras da animada canção, "Aissèra, Nanninè, me ne sagliette / Tu saie addò? Tu saie addò?", fugiu-me de sob os pés o chão, e cai, sentado, na grama, e assim fiquei até encerrar o meu galinho de estimação a canção, eu a fazer a vez de von Karajan. Seguiu-se a cantoria. Ouvi Francisco Chiquinho a cantar, e a cantar, e a cantar, com sua voz de tenor, sua voz maravilhosa, estupenda voz, o Figaro e o Funiculì Funiculà. "Bravo! Bravo! Bravíssimo!", eu assim exaltava o meu fraternal galinho, que estava às voltas, certo que com o estímulo do malte e da cevada, com as suas naturais alegria e animação, que se elevaram assim que ele se desfez do travesseiro e removeu do rosto a camada de carvão que lho cobria, e tratou de vestir uma saia multicolorida - e peço a Deus que minha esposa jamais venha a saber da insensata, desrespeitosa e despudorada ousadia do meu amigo emplumado - e ajeitar sobre a cabeça um cacho de bananas, um abacaxi, duas mangas, um pedaço de cana, um cacho de uvas, um abacate, duas tangerinas, duas maçãs, um coco, um bom punhado de jabuticabas, um kiwi, metade de melancia, e açai, e guaraná, e, com a desenvoltura de Philippe Petit, a repetir os trejeitos da Pequena Notável, com suas caras e bocas, numa voz fina, cativante, a mover-se num ritmo contagiante, carnavalesco, sem intervalos para respirarmos, cantar Mamãe Eu Quero. Íamos de um lado para o outro, ora a travarmo-nos um o braço do outro, e a rodopiarmos, eu a acompanhá-lo a cantar "Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero / mamãe, eu quero mamar / Dá a chupeta, dá a chupeta / Dá a chupeta pro bebê não chora." Ríamos, à beça. De tanto rir, ambos os dois rachávamos o bico. Gargalhamos ao cantarmos "Eu tenho uma irmã que se chama Ana / De tanto piscar o olho, já ficou sem a pestana." Não me aguentei em pé. Perdi o norte. Perdi o rumo. Perdi o prumo. Onde estava o chão?! Onde o céu?! Fui ao chão. Ora, tenho uma irmã que na pia de batismo recebeu o nome Ana. E no chão, caído, a sorrir, a gargalhar, a cantar, acompanhei o Francisco Chiquinho a cantarolar, ele a fazer-se de Carmen Miranda, o Zequinha: "O tico-tico tá / Tá outra vez aqui / O tico-tico tá comendo / meu fubá / O tico-tico tem, tem que alimentar / Que vá comer umas minhocas no pomar." Revelou-se-me o Francisco Chiquinho mímico de primeira, fora de série. Senti-lhe firmeza ao fingir-se um pássaro a ciscar o chão, a remover terra, e a retirar de um buraco um bom punhado de minhocas, e a engoli-las. Se não o conhecesse tão bem como conheço as palmas de minhas mãos, eu diria que ele é um pássaro. Sem fôlego, ambos nós dois, após cantarmos, três vezes, as duas marchinhas, pedi-lhe ajuda para me levantar. Ele ajudou-me com a presteza de um velho, e querido, amigo. E eu o derrubei. E espalharam-se pelo chão as jabuticabas, as mangas, as uvas, as bananas, o abacaxi, a cana, o kiwi, a melancia, as tangerinas, o abacate, as maçãs, o guaraná, o coco, o açai. Se não me falha a memória, havia, também, na cabeça do Francisco Chiquinho, duas carambolas, uma fruta-do-conde, três goiabas e uma jaca. E ambos deitamos no gramado, e deitados permanecemos, a gargalhar, e a gargalhar, e a gargalhar, e a falar qualquer coisa, e a apontar para a Lua, que, não sabíamos porquê, não sendo noite, viajava pelos céus ensolarados. Com muito esforço, muito, muito esforço, assim que entendemos que era eu e ele que girávamos, e não a Terra, e que o Sol e a Lua estavam de namorico, e o namoro deles tinha de ser à luz do dia, e não à noite, porque os pais dela, dois corujas, a traziam à rédea curta, levantamo-nos, e fomos à churrasqueira, e enchemos o bucho, que, para a nossa surpresa, já havia se esvaziado, com um bom naco de carne de boi, ou de vaca, não sei, e algumas doses da loirinha gelada que entorpecia-nos os sentidos. Enquanto, sentados, estávamos a degustar o alimento dos deuses, o Francisco Chiquinho cantou outra canção de seu inesgotável repertório, uma cornucópia: "Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien / Ni le bien qu'on m'a fait / Ni le mal. / Tout ça m'est bien égal / Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien / C'est payé, balayé, oublié / Je me fous du passé." Francês! O Francisco Chiquinho também canta em francês. Oh! Edith Piaf! O meu amigo de todas as horas conhece a língua do Asterix, do Obelix, do Panoramix e do Ideiafix, e do Tin-Tin, os maiores heróis da França!

Estávamos quase sem forças meu amigo e eu. Havíamos exagerado nas músicas e na dança. Retirando energia sabe-se lá de onde, Francisco Chiquinho iria para o grand finale. Queria fechar o espetáculo com chave-de-ouro. Pôs-se em pé, empinou-se, assumiu postura marcial, pousou a asa sobre o coração, deixou a barriga para dentro e o peito para fora, a fisionomia impassível, o semblante patriótico, bateu continência, e, firme, e sério, e venerável, cantou: "Brasil, meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro / Vou cantar-te nos meus versos." Com dificuldade, pus-me em pé, e copiei-lhe a postura. E segui-lhe a cantar. Ele emocionou-se com "Ô! Esse coqueiro que dá coco / Onde eu amarro a minha rede / Nas noites claras de luar / Brasil! Brasil!" O meu velho e amável amigo ama, confortavelmente deitado numa rede, sonhar, rememorar capítulos inesquecíveis de sua história, os dramáticos, os épicos, os cômicos, os trágicos. Sonhos revigorantes. Ao fim da canção, levou à boca um copo, e apreciou um gole de cerveja. E deitou-se na rede.

Cacarejar o Francisco Chiquinho só cacareja em português, e num português acaipirado. Ele é um caipira paulista. Mas cantar, canta que é uma beleza em português, em inglês, em italiano e em francês. É um poliglota. Ele canta, também, em japonês, russo, espanhol e alemão? Não sei. Ontem, nenhuma canção destes idiomas ele cantou.

Escondia-me Francisco Chiquinho o seu dom musical. É ele um cantor de admirável talento. Um gênio da música. E é ele meu amigo, amigo-do-peito, velho amigo.

Acordei, hoje cedo, assim que ouvi Francisco Chiquinho anunciar o nascer do dia, dia lindo, maravilhoso, o Sol no horizonte. Levantei-me do gramado, pus-me, apoiado nos braços, ligeiramente inclinado para trás, sentado, e olhei para o Francisco Chiquinho. Sorri, feliz, ao vê-lo animado, recuperada a sua vontade de viver, a cacarejar com todo o poder, que é muito, e maior, bem maior, do que eu imaginava até ontem, de seus pulmões, poderosos pulmões.

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