sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Três contos

 Faz calor, ou frio?

Era uma vez...

João Cascudo, descendente dos neanderthais, homem de meia idade (e o que eu quero dizer ao dá-lo de meia-idade, não sei), de estatura mediana, barriga pronunciada, de poucos fios de cabelos espalhados pela cabeça razoavelmente agigantada. Num dia de sol de rachar a cabeça de todo filho de Deus, saiu à rua com indumentária típica dos esquimós. Abordou-o Paulo, seu vizinho, que, ao vê-lo, perguntou-se, divertido com a figura bizarra dele, o que lhe ia na cabeça:

- Ô, casca grossa, você está no Pólo Norte?

- Não, songomongo; estou no Pólo Sul - replicou João, sério e sorridente, carrancudo e jocoso.

- E tem pinguim aí, ô, picolé? - persistiu Paulo, zombeteiro, a rir, agora com mais liberdade, de seu amigo.

- 'tô com frio, ô, diabos!

- Frio!? Você está doente!?

- Doente, ou não, hoje estou com frio. Não sei o que me acontece hoje. Tão logo acordei, desci da cama; ao pôr os pés no chão, tremi, e dos pés à cabeça, de frio, de frio dos infernos.

- Dos infernos!? Dos infernos!? E há frio no inferno!?

- Quem sabe?!

E João e Paulo seguiram, juntos, até a padaria.

*

Faz frio, ou calor?

Era uma vez...

Samantha, moça na primavera dos seus dezoito anos, morena cor de jambo, de olhos amendoados, lábios sedutores, cintura de vespa, quadris de tanajura, cabeleira a encachoeirar-se pelos ombros estreitos, pernas bem esculpidas, de um corpo, enfim, divino - que me desculpem a ousadia.

Naquele dia, de temperatura de congelar pinguim, saiu a beldade, às oito da manhã, da sua casa. A sua indumentária, a de uma nativa pré-cabralina; não digo que ela estava nua, inteiramente nua, como a natureza a deu ao mundo, porque cobria-lhe os pés mimosos chinelos-de-dedos, o quadril uma faixa de pano que atende pelo nome de shorts, e o busto generoso uma tira de tecido diáfano, e as orelhas brincos multicoloridos. Cruzou o caminho de Beatriz, sua amiga, que, assim que deteve nela os olhos, esgazeou-os a ponto de arremessá-los para fora das órbitas e, com voz e palavras que lhe traíam a surpresa involuntária, exclamou:

- Sam, meu Deus! Você está no Saara!? Nossa! Eu, a tremer de frio, e você...

- Oi, Bia. Meu corpo não reage ao clima segundo as leis da natureza.

- Sei... Exibida.

E Samantha e Beatriz rumaram, juntas, ao mercadinho.

*

Existe, ou não existe?


Encontraram-se João e José, na Praça Monsenhor Marcondes, hoje, às onze da manhã. Após saudarem-se, desejando um ao outro um bom dia e apertarem-se as mãos, João saiu-se com uma notícia daquelas que não lhe eram incomuns, daquelas com as quais, sabiam seus familiares e parentes, e amigos e colegas de trabalho, envolvia os seus interlocutores num labirinto de perguntas e respostas cuja saída eles jamais encontravam:

- Ontem, Zé, eu vi uma cobra de quatro asas, dois pés e um chifre.

- Deixe de besteiras, João. Não existe tal cobra.

- Não, Zé?! Não existe!? Você já viu uma cobra de quatro asas, dois pés e um chifre?

- Não. É claro que não. Não existe.

- Se nunca viu uma tal cobra, como você sabe que ela não existe?

- Ora... Zé, eu... Não existe tal cobra. E pronto! Deixe de besteiras. Eu nunca vi uma cobra dessas.

- Você, Zé, já viu um vírus?

- Não.

- Mas você acredita que vírus existem.

- E o que tem uma coisa com a outra?! Você confunde alhos com bugalhos, e geringonça com onça.

- Você já viu uma bactéria?

- Não. Nunca vi uma bactéria. Deixe de pilhéria, de lérias.

- Mas você acredita que bactérias existem, não acredita?

- Ora, mas os cientistas... Aonde você quer chegar?

- Quero chegar ao banco. Estou indo pra lá. Tenho de pagar quatro contas. 

- Perguntei aonde você quer chegar com tais perguntas, ô, desmiolado.

- Você me disse, Zé, que cobra de quatro asas, dois pés e um chifre não existe porque você jamais a viu.

- Não. Não. Eu disse que não existe porque não existe.

- Mas você nunca viu tal cobra.

- De fato, nunca vi.

- Mas eu vi.

- E você persiste, João?? Deixe de asneira. Vocé viu uma fantasmagórica miragem.

- Ao não ver uma cobra de quatro asas, dois pés e um chifre, você não prova que tal cobra não existe.

- Não existe. Não vi

- Você já viu o seu cérebro?

- Não... Mas... Ora... Vá se danar, João. Você é louco, e quer me enlouquecer. Deixe de peneiras... Já nem sei o que digo. Esqueça tal assunto. O Timão ganhou, ontem, o jogo. Três a zero.

- Não ganhou, não. Eu não vi.

- Durma-se com um barulho desses!

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