Sócrates é um emblema do homem do povo que, conhecedor de
sua ignorância, melhor, buscando conhecer sua ignorância, descobre-se, no
confronto com os reputados sábios, que ostentam títulos e fortuna, para sua
surpresa, que é ele o sábio, e eles os tolos, que não se dedicam ao cultivo da
sabedoria, pois criam de si mesmos uma imagem que lhes satisfaz a vaidade,
imagem irrealista, e que fogem à tarefa de se dedicarem ao estudo de si mesmos,
para se conhecerem, e ocupam-se de avaliar os outros – mas o fazem, claro, sem
inteligência, pois não se conhecem, e acabam por projetar nos outros o que são,
escudando-se atrás dos títulos e da fortuna que tão orgulhosamente ostentam.
Na sua apologia, Sócrates, segundo Platão, declara que
ouviu da pitonisa de Delfos palavras que lhe soaram oraculares, palavras que,
em síntese, o apontam como o mais sábio dos homens. Intrigou-o tal revelação.
Seria Sócrates, um ignorante, ele assim se entendia, o sábio dos sábios? Ele,
um homem sem títulos; ele, apenas um cidadão de Atenas, o mais sábio dos
atenienses? Sábios, sabia ele, eram aqueles homens que, nas praças, apresentando-se
ao público, vendiam seus conhecimentos para aqueles que lhos pudessem comprar
por um bom punhado de moedas. Mas ele, Sócrates, um sábio!? Ora, foi a pitonisa
do oráculo de Delfos que lhe dera tal notícia; ela transmitira-lhe uma
revelação do Oráculo de Delfos. E o Oráculo de Delfos era infalível. Sempre
revelava aos homens o que destes os deuses conservavam oculto. Errou o Oráculo
de Delfos, que era infalível? Sócrates encasquetou-se; intrigado, coçou a
cabeça. Cabia a Sócrates, agora, e a ele apenas, tirar a prova dos nove. Se o
Oráculo de Delfos disse que era Sócrates o mais sábio dos homens, então era Sócrates
o mais sábio dos homens. Sócrates, então, impelido pelo demônio que lhe animava
o espírito, decidiu ir à praça abordar os sábios da Grécia e submetê-los à sabatina,
usando de um instrumento, o diálogo, mas não um diálogo proposto de uma forma
qualquer, desordenado, como se os que dele participassem jogassem as palavras
ao vento; ele, Sócrates, tinha de extrair a verdade das questões discutidas; e
tinha um meio, meio só seu: fazer-se de parteiro da verdade, e o recurso que usou
foi a maiêutica, obra de seu demônio interior. E abordava Sócrates um dos
doutores da época, reputado sábio, e com ele entabulava, despretensiosamente,
uma conversa, e à pergunta que lhe fazia ouvia-lhe a resposta, e seguia-se
outra pergunta, e outra pergunta, e outra, até que o caso se esclarecesse, e a
verdade acerca do tema tratado se lhes revelasse. E abordava Sócrates outro de
seus contemporâneos reputados sábios, e fazia a vez de um ignorante em busca da
compreensão das coisas do mundo. E abordava outro cidadão ateniense
respeitável, dono de conhecimento das coisas do mundo físico e metafísico. E
outro. E outro. E assim, sempre no papel de ignorante, Sócrates revelava a
ignorância alheia, a dos reputados sábios, pessoas que sabiam falar, e falar
bem, e persuadir as que as ouviam de que o que lhes falavam era a sabedoria dos
deuses. E tais sábios, feridos no ego, deparando-se com um homem que ousava,
destemido, revelar, deles, a ignorância, ressentidos, rancorosos, enraivecidos,
ensandecidos, arquitetaram-lhe a morte, a de Sócrates, homem que os
desmascarava em praça pública, constrangendo-os, enodoando-lhes a reputação.
Jamais admitiriam que um joão-ninguém se lhes sobressaísse na arte na qual eles
se consideravam lídimos representantes e seguisse a arregimentar um exército de
admiradores, um sem número de seguidores, que, lhe reconhecendo a
superioridade, desdenhavam-los; os pretensos sábios, feridos na vaidade de
homens reputados superiores, em razão da aventura intelectual de Sócrates, e no
confronto com este revelando-se tolos, tinham de dar-lhe cabo.
No confronto com os sábios revelou-se Sócrates sábio, não
porque era o seu desejo sobressair-se aos seus rivais, mas porque desejava,
unicamente, intrigado, entender o teor da revelação, para ele enigmática, do
oráculo de Delfos; e sobressaindo-se, repito, não porque era esse o seu
propósito, aos seus oponentes, estes, afamados sábios, que, ao emularem-lo,
revelaram-se pequenos, risíveis, conquistou-lhes a inimizade, e a de muitas
outras personagens, que nele identificaram uma ameaça à ordem por eles
estabelecida. E Sócrates, caluniado, foi acusado, por Meleto, de ser hostil aos
deuses da cidade de Atenas e corruptor dos jovens atenienses. E secundaram
Meleto Anito e Lícon.
E Sócrates usa, em sua defesa, a mais poderosa arma à
disposição dos homens: A palavra. E a palavra de Sócrates é poderosa. Tão
poderosa que, mesmo não conquistando o coração do júri, que não o inocentou dos
crimes que Meleto lhe imputara e condenou-o à morte, obrigando-o a ingerir
cicuta, sobreviveu a vinte e cinco séculos. E hoje a façanha de Sócrates está,
registrada em todos os idiomas, à disposição de todos os homens que se movem
pelo mesmo espírito que o animava.
Além de, ao reconhecer-se ignorante, e revelar-se um
sábio, era Sócrates audaz, corajoso, um modelo de abnegação, de vida dedicada a
algo maior do que a sua existência; e era tal a sua consciência do valor,
autêntico valor, da liberdade do homem que preferiu ele morrer a suplicar aos
juízes que lhe poupassem a vida; não se traiu; não se curvou diante de seus
algozes. Honrou-se ao conservar-se altivo em sua humildade. E outro de seus
talentos revelou Sócrates, segundo o relato de seu mais famoso discípulo: o da
profecia: vaticinou sofrimento indizível aos homens que o condenaram. E a
história ensina que o destino deles corresponde ao profetizado pelo mais sábio
dos homens.
É Apologia de Sócrates um livro indispensável para quem
deseja conhecer o que é a coragem de um homem talentoso diante dos medíocres, de
um homem que prefere, por amor à verdade, a morte, e sabe que, obtendo-a, conquista
a liberdade.
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