domingo, 24 de setembro de 2023

notas

 

A palavra vale prata; o silêncio, ouro.

Ninguém desconhece o ditado popular "A palavra vale prata; o silêncio, ouro." Ninguém. Mas raras são as pessoas que agem de acordo com a lição que ele encerra. E eu conheço uma dessas raras pessoas, um nonagenário que jamais abriu a boca para dizer o que quer que seja que depois fê-lo do que disse arrepender-se, o senhor Temístocles Epaminondas Figueira de Lima Oliveira da Silva e Silva, mudo de nascença.

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Os personagens da literatura clássica.

Sem delongas, e em poucas, quase nenhumas, palavras, digo: conta Miguel de Cervantes Saavedra, na sua mais famosa obra, Dom Quixote de La Mancha, uma história das mais bestas, mas o fez com tanta graça que o universo conquistou e fez de seu herói uma personagem universalmente conhecida e admirada: um velho maluco e um gordinho cretino perambulam, erráticos, pelas terras da Mancha, e fazem tantas besteiras, infinitas asneiras, inúmeros disparates, e são tantas e tantos que não cabem no gibi, que levam no lombo, vezes sem conta, pancadas sem fim, que lhes administram sem dó os tipos mais abestalhados, de que se têm notícias, que vagueiam por aquelas terras das quais só se fala porque Cervantes teimou em contar a história daqueles dois aos quais respeitosamente aludi no início deste texto, Dom Quixote e Sancho Pança. Ah! Esquecia-me: outro personagem da obra é um portento de força cavalar: Rocinante, besta irracional da estirpe da Babieca, a bela e vigorosa montaria do Charlton Heston.

E quem é o personagem de Crime e Castigo, do genial Dostoiévki?! Um toleirão de marca-maior, o tal de Ródion Romanovitch Raskolnikov (não sei porque cargas-d'água, até há uns meses, antes de eu me pôr a ler tal livro segunda vez, eu acreditava que era o nome dele Rasputin - não sei por onde me entrou este nome na cachola). O sujeito é tão sem-noção, tão despirulitado, que, certa feita, ao conhecer as peripécias e as façanhas do Napoleão, o Bonaparte (se o primeiro, se o segundo, se o terceiro, se o quarto, se o quinto, e etecétera, e tal, não sei), soube que ele, porque fez o que fez, isto é, matou um batalhão de gente, é um herói universal, resolveu matar uma velhinha. Coitada da velhinha! Ródion deu-lhe uma cacetada daquelas, mandando-a desta para a melhor. E ferrou-se o senhor Raskolnikov! Besta-quadrada! Acreditava que iriam tê-lo por herói só porque ele matou uma velhinha - melhor, duas (e a segunda, um efeito colateral, porque estava, na hora errada, no lugar errado, dele tomou uma cacetada daquelas, e foi-se para o reino de além-túmulo).

Aqui estãos dois exemplos, dentro os melhores que eu poderia citar, dos tipos de personagens que os gênios da literatura tiram do bestunto. Cá entre nós: Os escritores têm cada idéia de jerico! E os dois aqui mencionados, o espanhol e o russo, estão na conta dos gênios!

Que o leitor não pense que estou, despeitado, desdenhoso, estupidamente iconoclasta, a desrespeitar o Cervantes e o Dostoievski, e, por extensão, os outros escritores clássicos, e os personagens que eles criaram. Longe disso. Muito longe disso. Muitíssimo longe. Muitíssimo longíssimo dissíssimo. Respeito-os imensamente. A admiração que tenho por eles não encontra limites. Sei que eles, falando de seres humanos, criaram tipos humanos, e os tipos humanos que eles criaram, imperfeitos porque humanos, falhos em sua condição humana, não são modelos de perfeição; são tipos, pode-se dizer, comuns, encontradiços em toda esquina, daí serem universais, modelos, direi, de perfeição literária e modelos porque têm imperfeições, que não são poucas.

Quem não conhece um velho doido-de-pedra a fazer das suas (e as das suas são dele)?! Quem não conhece, ou não sabe da existência, de tipos que se igualam ao Raskolnikov?! Para a sorte de muita gente, estes são mais raros do que aqueles. Vai que me aparece à frente da bela estampa um Rasputin... quero dizer, um Ródion Romanovitch Raskolnikov! Deus me livre! E eu não terei um Fiódor Mikhailovitch Dostoievski para contar ao mundo a minha história!

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Um conselho de amigo: Se de cabeça quente, mantenha a calma e seja educado, sempre.

Toda pessoa que honra a sua condição de ser humano, nos momentos em que lhe aflora o espírito a raiva, os nervos à flor da pele, conserva, com dignidade, a educação - e os mais felizardos trá-la do berço - que o convívio social pede, e não perde a compostura.

Não é raro assistirmos a espetáculos constrangedores, uma pessoa, irritada, furibunda, a esgoelar-se, com o dedo em riste ao nariz de uma outra pessoa, a cuspir-lhe ofensas, jorra-lhe na cara: "Enfie no **!" Não reproduzo o palavrão (que é uma palavrinha composta de duas letras, uma consoante e uma vogal), que ninguém desconhece, porque faço juz à educação que recebi ainda no berço, num tempo que a minha memória, não o alcançando, dele conserva no espírito as lições paternais e maternais. Espetáculos constrangedores. Incivis. De gente má educada. O uso de palavrões tem de ser prática de uso restrito às pessoas de baixa extração moral. À pessoa educada - e é esta a exortação que faço a quem me lê - cabe, nos momentos em que está de cabeça quente, mantê-la fria, e, educadamente, dizer, e com todas as letras, a quem a tira do sério: "Enfie no nariz!"


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As palavras-xodó.

Todo escritor tem as suas palavras de estimação, aquelas às quais recorre em momentos de apuro, em não raros casos emprestando-lhes significados que elas não receberam no momento cada qual da sua concepção, ou, simplesmente, porque por elas tem afeição, cuja origem desconhece - ou talvez a conheça mas não lhe sabe explicar a existência, quais sentimentos seus estão a elas vinculados. Pode ser da afeição razão sentimental relacionada com algum personagem ou real, ou fictício, que lhe faz evocar um episódio importante de sua vida, um momento de felicidade inexcedível, ou por outras razões quaisquer. Não sei se há estudos a respeito - a minha ignorância no tocante ao tema é patente, e não tenho porquê escondê-la de quem quer que seja, de mim tampouco - do amor, do apreço, da paixão, mesmo, incondicional, irracional, doentia, dos escritores por estas e aquelas palavras cada um deles com as de sua estima das quais acreditam serem os proprietários exclusivos - e enciumam-se ao vê-las em obras alheias, e em tais momentos sentem ganas de esganar os delas iníquos seviciadores.

Quais são as palavras pelas quais se apaixonaram o escritor Fulano, o escritor Beltrano e o escritor Cicrano, não sei. Sei as palavras pelas quais me apaixonei, as que são de minha estima, as minhas palavras-xodó - assim eu as apelidei, entendo, e que ninguêm ouse contradizer-me, apropriadamente -, aquelas palavras que sempre me vêm à mente quando estou a escrever, e ao escrever emitir certos pensamentos, descrever este ou aquele personagem, esta ou aquela cena, este ou aquele objeto, a narrar este ou aquele episódio, independentemente da substância moral do texto, da psicologia e do temperamento das personagens, do espírito que empresto ao assunto - e se eu não me disciplino, não ponho em ordem a minha cabeça, acabo, inadvertidamente, por usar, na descrição desta ou daquela cena, deste ou daquele personagem, na narração deste ou daquele episódio, uma palavra, das que me são xodó, ou um montaréu delas, ao texto emprestando um espírito que lhe não pertence. Há palavras adequadas para uma narrativa épica; outras, que se encaixam nas cômicas; e umas que ficam bem nas góticas; outras mais, nas românticas. Pode-se usar palavras que se saem bem em aventuras de terror em narrativas de romance água-com-açúcar? E em aventuras de suspense repletas de episódios tensos que põem em suspenso a respiração do leitor é de bom tom usar de palavras que se encaixam à perfeição em peripécias picarescas recheadas de reviravoltas rocambolescas comuns aos folhetins? Não. E não. E não é raro abordarem-me, atrevidas e desinibidas, dentre as minhas palavras-xodó, as que têm espírito joco-sério, e justo no momento em que estou a narrar uma aventura de terror, ou a quebrar a cabeça pensando num texto cujo tema é política brasileira - neste caso nem sempre as minhas palavras-xodó joco-sérias são inapropriadas, e nem as comuns às tramas de terror, afinal é a política brasileira trama, e da pior espécie, de aventura picaresca e romance gótico.

Estou a ponto de acreditar que são as palavras seres vivos, entidades cósmicas omnissapientes, que sabem, infalivelmente, quem e quando assediarem.

As palavras que me são inescapáveis, aquelas das quais não posso me esquivar, as quais infalivelmente procuram-me, ou se me põem à disposição, e são-me servis, nunca se me fazem de rogadas. São-me acolhedoras, e sempre as procuro, e mesmo que eu não as queira elas me vêm à mente. É tal fenômeno impressionante, inexplicável. Vivemos eu e elas na mesma sintonia, e apreciamos a mesma sinfonia. Há um elo a nos vincular no tecido do cosmos, conservando-nos unidos por toda a eternidade. Somos elas e eu as duas metades da maçã. Imagem desprovida de encanto poético, brega.

Estou a me enredar numa rede que me prende os pensamentos, enredando-me numa trama que, se eu não me cuidar, acabará por, dominando-me, obrigar-me a estender-me, indefinidamente, perdido num enredo sem pé nem cabeça, esquecido do tema que me inspirou este artigo, que estou a redigir sem ocupar-me de me pôr freios aos pensamentos.

Estou a falar de mim, e de mim apenas, e de minhas palavras-xodó.

Discreto a meu respeito, e a respeito de qualquer outra pessoa, embora em meus textos eu me revele, e o faço com a descrição que me identifica, e porque, mesmo que eu não o queira, exponho o que pretendo conservar comigo a guarda exclusiva, eu me dedico à redação deste texto aqui revelando uma das facetas - ou mais de uma - da minha personalidade.

Tenho, o que não é de surpreender quem quer que seja, as minhas palavras preferidas, as palavras de minha estima, as minhas palavras-xodó. E as minhas veleidades. E idiossincrasias. E uma das minhas palavras-xodó eu há pouco a evitei, e com muito esforço, esforço hercúleo, a empreender, dir-se-ia, uma tarefa ingente, que de mim exigiu força sobrehumana: "conquanto". Por alguma razão usei, esforçando-me para conservar firme a minha decisão, em vez de "conquanto", "embora". Estou a mentir?! Em alguma linha acima desta lê-se a palavra que usei no lugar da que por ela eu substitui. Confira, leitor, se digo certo, e, se certo, bem, ou se estou a brincar.

E outra das minhas palavras-xodó é "disparate", que aprendi a estimar durante a leitura de um dos livros que mais me agrada, Dom Quixote de La Mancha, do quixotesco Miguel de Cervantes Saavedra, herói de Lepanto. E há outras? Há. E não são poucas.

Ora, se eu sou leitor dedicado e escritor ocupado, de muito ler, e escrever demais, preciso, para a redação dos textos que minha parca inteligência concebe, de palavras, e muitas, e das muitas que uso, e de muitas delas abuso, há aquelas que, mais do que quaisquer outras, são do meu agrado, as minhas palavras-xodó, digo uma vez mais. E apresento-te, querido leitor, algumas delas: "incontinenti", que sempre encontro quando a pressa, acossando-me, obriga-me a passar sebo nas canelas; "balacobaco", que uso sempre que tenho em mente dizer que o que eu tenho a dizer ou o que chegou-me ao conhecimento é do balacobaco; "escalafobético", que é uma das palavras mais estranhas, esquisitas, de que tenho notícia; "paradigma", que me faz pensar em regras, em visões-de-mundo, em independência; "teratológico", que é das mais monstruosas que eu conheço, e ao nela pensar vêm-me à mente aquelas criaturas terribilíssimas das história de Homero e dos cantos mitológicos de inúmeros povos antediluvianos; "estapafúrdio", que é uma palavra que me cheira a absurdo, coisa do arco-da-velha; "pêta", que aprendi a gostar durante a leitura de O Sítio do Picapau Amarelo, do Monteiro Lobato, meu vizinho; "mínimo", que acho o máximo; "diáfano", que de mim nada esconde e que me traz aos sonhos as ninfas, as hamadriades, as naiades e outras entidades oníricas; "impassível", que é daquelas que jamais perdem a majestade; "transcendente", que escapa à matéria; "translúcido", que me revela belezas feminis que as beldades querem (e não querem) conservar ocultas de olhos indiscretos; "songomongo", que é coisa de bobalhões, patetas, pacóvios e pascácios; "tanglomanglo", que me cheira à feitiçaria e a caiporismo; "peripatético", que às vezes me faz pensar em filosofia, e da alta, aristotélica, às vez em patetice; "escatológico", que me parece coisa do fim do mundo; "dantesco", que me inspira medo ao inferno, ao inferno de Dante Alighieri - sempre que penso no inferno, vêm-me à mente o do autor da Divina Comédia, que nem um pingo de comédia tem, o inferno dantesco, e um vórtice assustadoramente tétrico de imagens infernais invadem-me a mente: as ilustrações de Gustave Doré, horripilantes, assustadoras, dantescas, para o Inferno, o primeiro dos três livros que compõem a obra máxima do mais mal-encarado dos florentinos; "inconstitucionalissimamente". Mentira. Desta não gosto, não.

Algumas das minhas palavras-xodó aqui eu não as listei, mas as usei na redação deste texto, que é do balcobaco, um tanto quanto estapafúrdio, e translúcido, pois nele revelo, não direi ninharias, mas singularidades não necessariamente irrelevantes da minha personalidade.

Aqui, então, para apreço do leitor, que me é querido, uma palha das minhas palavras-xodó. Delas gosto, estimo-as.

Falei das minhas palavras-xodó, das palavras que são do meu agrado, das que atendem ao meu gosto. E as pelas quais nenhuma simpatia eu tenho quais são? Ora, se delas não gosto...


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