domingo, 13 de dezembro de 2020

Ativistas e um conto

 Dos ativistas


O carinha não estende a mão para entregar alguns centavos para o mendigo que lhe suplica ajuda, e diz: "Eu vou salvar a humanidade."

O carinha não move um dedo para cuidar das árvores da praça perto da sua casa, e diz: "Eu vou salvar a Amazônia e o Pantanal."

O carinha não abandona o seu conforto para limpar córregos e riachos próximos da sua casa, e diz: "Eu vou salvar os oceanos."

O carinha nada faz para conservar limpa a cidade em que vive, e diz: "Eu vou salvar a Terra."

O carinha estimula todo tipo de conflito entre negros e brancos, homens e mulheres, pais e filhos, ricos e pobres, heterossexuais e homossexuais, religiosos e ateus, etc., etc., e etc., e diz: "Eu sou da paz."

O carinha é o perfeito ativista. Acredita que tem poder para resolver os problemas do universo, mas é incapaz de resolver pequenos problemas ao seu redor. Incapaz, porque indiferente. E presunçoso.

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Há humor na literatura brasileira?

Diz que a literatura brasileira é chata, sem graça, quem jamais se dispôs a ler um livro de um bom escritor brasileiro, e quem, tendo lido algum livro de escritor brasileiro, leu um de escritor desprovido de talento, ou de um escritor, para usar uma gíria moderna, lacrador, ou, como se dizia há pouco tempo, engajado. Engajado em quê? Em defender uma ideologia malsã que corrói tudo o que toca e que não tem o desejo de contar, despretensiosamente, uma boa estória, aventura envolvente de uma personagem cativante - e o escritor lacrador é o legítimo herdeiro do escritor engajado.
E é a literatura brasileira rica de bons livros de humor, livros que divertem, entretêm, educam, agradáveis, escritos por talentosos escritores brasileiros? Sim, é. São inúmeros os escritores brasileiros que se rivalizam com os melhores de outras nações. E no humor tem a literatura brasileira mestres e escritores que, mesmo de pouco talento, souberam escrever livros interessantes, de humor impagável, que de seus autores revelam muito bom gosto, criatividade, espirituosidade, e perspicácia, que lhes propiciaram os meios para identificarem da nossa sociedade e do nosso povo aspectos sutis que escritores de maior gênio não detectaram - e muitos dos de gênio superior, detectando-os, não souberam registrá-los em suas obras, e dos que souberam, não o fizeram com a maestria que o talento superior que os animava exigia.
Sem o desejo de me estender neste texto, que nada mais é do que o registro de alguns pensamentos que hoje de manhã, doze de dezembro de 2.020, afloraram-se à mente, digo que a literatura brasileira é rica, riquíssima, de humor, de graça fina, de comédia contagiante, e que, infelizmente, ela é, num tempo em que as pessoas em sua maioria ocupam-se com outras formas de entretenimento em detrimento da leitura de contos, novelas, romances e peças teatrais, pouco, ou nada, conhecida dos brasileiros. Dentre os escritores brasileiros que escreveram obras de humor que nos fazem rir a bandeiras despregadas, há os pequenos, os médios, os grandes, os gigantes. E aqui, não sendo meu propósito classificar escritores em grupos distintos, agrupando os pequenos com os pequenos, os médios com os médios, os grandes com os grandes, os gigantes com os gigantes, discriminando-os, cito, em ordem alfabética, alguns nomes da nossa literatura acompanhados cada qual do título de uma ou mais de suas obras ricas de humor.
Arthur Azevedo - vários de seus contos.
Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz.
França Júnior - peças teatrais - comédias de costumes.
Graciliano Ramos - Alexandre e Outros Heróis.
Herbert Sales - O Fruto do Vosso Ventre.
Joaquim Manuel de Macedo - A Carteira de Meu Tio.
José Cândido de Carvalho - Porque Lula Bergantim não Atravessou o Rubicón.
José Osvaldo de Meira Penna - Cândido Pafúncio.
Lima Barreto - O Homen que Sabia Javanês.
Machado de Assis, além de dezenas de contos, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Monteiro Lobato - alguns volumes da série O Sítio do Pica-pau Amarelo. Dentre eles, os que mais me agradaram: O Minotauro; e, Os Doze Trabalhos de Hércules.
Estes são alguns, poucos, escritores que me vêm à mente. Todos eles têm algo a oferecer àqueles que se dignam a ler-lhes os livros. Quem os lê gargalham, dobram-se de tanto rir, choram de tanto rir. Divertem-se.

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Mensagem do Barnabé Varejeira - Teste de Alergia

Tenho, hoje, Cérjim, meu amigo do peito, pa contá po cê uma lembrança mia, de um fato que conteceu há um bom par de anos. Era o meu fio varão, o Bézinho, então um meninote robusto, encorpado; parecia ele um leitão engordado pa ceia de Natal. Tava bonitão, forte e pançudo o herdêro do meu sangue. Puxô pelo pai, a criança. Mas a mia muié, não sei pruque cargas d'água, encasquetô na cabeça que o fio dela e meu tava doente, e percisava fazê uns teste, teste de alergia. Não sei bem pruque, Cérhim, a mia muié tava animada com tar idéia, mas desconfio o que se assucedeu pa ela ficá tão presa numa idéia só, como um boi na canga: umas madame da cidade disséro pa ela que o nosso herdêro tava meio adoentado. Pronto! Foi o suficiente pa muié ficá preocupada. "Tá preocupada à toda.", disse eu pa ela. E acrescentei: "Pare, muié, de dá ovido pas madame da cidade. Elas só põe fio doente no mundo, e acha que todos os fio das ôtras muié que não os das madame da cidade são doente tâmém. E elas cerca os fio com muito dengo, com muito abraço e bêjo, e estraga eles; estraga as criança. Dêxe de bobagem. O fio nosso tá bão. Esquece o palavrório das madame da cidade. Elas não sabe nem cozinhá, não sabe passá café no coadô, nem escoiê o feijão, não sabe nem o que é uma panela, e nem limpá bumbum de nenê elas sabe. E elas qué ensiná o cê a cuidar do seu fio! Intão, muié, esqueça. Quem deu os peito po seu fio tirá leite? O cê, ou as madame da cidade? O cê. Que as madame da cidade vá pos quinto e nunca mais vórte. Intão, esqueça o que as madame da cidade disséro. Esqueça. O nosso fio tá bão, pançudo, forte." As mia palavra entráro por um ovido da mia consorte, e saíro po otro, fáci, fáci. Não encontráro obstáculo pela frente. Nenhum. Não teve jeito, Cérjim. Mia muié quis segui os conseio das madame da cidade. O fio ia tê que fazê os teste, teste de alergia. Que bêstera, meu Santo Deus Nosso Senhor Menino Jesus! E custava os óio da cara os teste: Cento e vinte barão. Barão não dá em árvre; e não chove barão na mia horta. E eu não ia gastá cento e vinte barão pa fazê uns teste sem propósito, teste que não serve pa nada. Teste que gente da cidade faz, e faz pruque é fraca. Mania de gente da cidade estraga gente da roça. Teste pa sabê se o menino tia alergia à formiga e à abeia e à açúcar e à casca de laranja e à leite, e a ôtros bicho. Cento e vinte barão! Não pago, não. Meu fio tava forte, robusto, pançudo, de peito bom, pernas forte. Mas, se a patroa queria fazê o teste, intão, pensei, vô fazê os teste, mas sem gastá um tostão. Eu não ia perder cento e vinte barão só pruque mia muié tava com idéia de madame da cidade. Mas não ia gastá, mermo, e de jeito maneira. Eu não ia, não. Não fiquei lôco pá queimá dinhêro, assim, sem mais, nem menos. Dinhêro não cai do céu. No ôtro dia, fui inté um abacateiro velho, que jâ morreu, onde havia, intão, uma coméia, e, com todo o cuidado do mundo, peguei uma abeia; e procurei meu herdêro; achei ele, falei pa ele esticá o braço; ele me obedeceu, e eu, prontamente, aticei a abeia no braço dele, e ele soltô um berrêro danado de infernal assim que a abeia picô ele com toda a vontade que o Menino Jesus deu pá ela. Foi um Deus nos acuda! Não demorô um piscar dos óio, a mãe dele apareceu, esbaforida, co os óio arregalado, como se tivesse visto uma sombração, uma abantesma, uma alma penada, de ôtro mundo, e acudiu ele. "O que aconteceu, Barnabé?", perguntô ela pa mim.
"Uma abeia mordeu o braço do nosso fio.", respondi. "Abeia?!", perguntô ela, surpresa. "É, muié, abeia. Eu peguei uma abeia, pus ela no braço dele, e aticei a bichinha pa ela mordê...", dizia eu, mas não pude completá a frase pruque a mãe dos meu fio me interrompeu, intrigada: "Pru que o cê fez isso, ómi?" "Foi um teste de alergia. Pá vê se o sangue do nosso fio tá bão; se aguenta veneno de abeia." "Agora o fio tá chorano.", disse ela.  E arrespondi: "Eu sei. Tô veno e ovino. Deus Nosso Senhor Menino Jesus me deu óios pa eu vê e ovidos pa eu ovi. Não sô nem cego, nem surdo." "E agora, o que vâmo fazê pa ele pará de chorá?", perguntô ela. E arrespondí, já irritado com a muié, sem pensá no que falava: "Dá dois cascudo nas oreia dele que ele pára de chorá. Ou dêxa ele comigo. Três cintada resórve." A muié afastô, sem pensá duas vez,o fio de mim. Depois, já acalmada dos nervo, ela foi me procurá pa uma conversa, conversa de marido e muié. E conversa vai, e conversa vem, resorvemo esperá dois dia pa vê o que ia acontecê co braço do menino, e prometi pa ela que eu não ia fazê mais nenhum teste de alergia com ele. No dia seguinte, o braço do menino tava co uma bruta brotoeja vermelhuda de dá arrepio; e eu esqueci a promessa que fiz pa muié pa qual prometi, na Igreja, diante de Deus, vivê na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, até o dia que a morte nos separasse. A promessa que fiz, na Igreja, com a testemunha de Deus e de todos os santos, irei cumprí; a otra, não; esqueci que a fiz. Saí de casa pa umas andanças e vortei de tardezinha, as galinha e os galo já empoleirado, e perguntei do nosso fio pa mia muié, que oiô pa mim, desconfiada, e preguntô o que eu trazia, nas mão, às costa. Muié é bicho danado de peçonhento: não querdita no marido. Eu disse pa ela que não era nada; e ela foi até a mia frente, com trocentas purga atrás das oreia, e empacô; e não havia cristão que a fizesse arredá pé de da minha frente. "O que o cê tem nas mão? Diga, ómi. Daqui não saio até o cê dizê o que diabos tá o cê planejano ca sua cabeça oca.", cobrô ela de mim explicação. E eu, já enfezado de tanta atormentação, retruquei: "Foi a mia cabeça oca que fez eu casá co cê." "Não arrédo pé.", replicô ela. "Vô fazê um teste de alergia co nosso fio.", respondi. "Teste de alergia!? O cê prometeu pa mim que não iria fazê mais nenhum teste de alergia co ele.", observô ela. Muié tem boa memória, reconheço, mas só usa a boa memória pa lembrá o marido das coisa errada que ele faz. "Prometê, prometi. Mas não com o testemunho de Deus.", repliquei, bufando. "Deus vê tudo, ómi. Deus vê tudo.", regogô a mãe dos meu fio. "Ele só vê as promessa que a gente faz se a gente estivé dentro da Igreja.", retruquei. "Dêxe de falá asneira, descrente. E basta! O que o cê tem, às costa, nas mão? O que o cê tá escondeno de mim? Sou sua muié; o cê não pode escondê nada de mim.", exigiu ela; e eu, não teno ôtra opção, levei as mão pa frente da mia barriga, e mostrei pa mia muié o que tava comigo. "Um pote de vidro! O que tá dentro do pote de vidro?!", perguntô ela, preocupada. E arrespondi: "Não tá veno, não, muié? O cê é cega, é? Deus deu po cê dois óio po cê vê. O que tá dentro do pote?! Veja, muié, cos seus óio: Uma cascavér!" A mãe dos meu fio desmaiô. Que sufoco passei nas hora seguinte! Eu tinha de ressuscitá mia muié. Meu Deus do céu! Foi um Deus nos acuda. Diz o ditado que Deus faz o certo por linhas torta. E é vredade. Adespois da experiência, a mia muié e eu chegâmo a um acordo. E ela desistiu dos teste de alergia que aprendeu cas madame da cidade, muié que só têm idéia que estraga as muié da roça.
Cérjim, é esta a instória que eu me alembrei.
Tenha um bom dia, Cérjim. Fique com Deus Nosso Senhor. Ôtro dia conto ôtra instória po cê. Intê.

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