domingo, 16 de abril de 2023

resenhas

 A Casa dos Náufragos - de Guillermo Rosales


São os náufragos cubanos; e a casa um asilo particular americano situado, em Miami, num gueto de cubanos exilados, fugidos de Cuba comunista, pós-revolucionária, cujo povo está sob a foice e o martelo de Fidel Castro.

William Figueras, escritor cubano, leitor de Proust, Hemingway, Fitzgerald, Ionescu, Albee, e de outros nomes importantes e respeitáveis da literatura moderna, e de poetas ingleses, William Blake, Byron, Coleridge, John Keats, reunidos em um volume, que ele está sempre a compulsar, de poesia romântica inglesa, louco, insano, é deixado, após seus familiares o abandonarem, por uma sua tia, a Clotilde, numa "boarding home", o asilo, cujos náufragos aí recolhidos são loucos, e dentre os mais estranhos, os mais bizarros, anomalias, dir-se-ia, da natureza, retratos da perdição humana, da miséria humana, daquilo que o ser humano tem de mais asqueroso, mais podre - e não estou a me referir aos internos, unicamente: os administradores do asilo são dois tipos repulsivos, imundos, Curbelo, o administrador, e Arsenio, o imediato, homem doentio, que exploram os, e abusam dos, doidos, cujos familiares os deixaram (direi melhor se dizer abandonaram) sob os cuidados deles, mas eles, maldosos, são indiferentes aos males que os afligem e que lhes infligem: mantêm-los mal cuidados, mal lavados, Curbelo exclusivamente interessado no dinheiro que o governo americano lhe disponibiliza e os familiares deles lhe entregam, regiamente, todo mês, jamais se desincumbindo das tarefas que os contratos o obrigam a oferecer aos internados.

A violência é a tônica do relato, esquelético, desprovido de meios-tons, de penumbras; não há luz; há sombras; há escuridão, que não oculta a cru realidade no asilo: revela-a, iluminando-a. Não há romantismo no relato de um narrador que ama poetas românticos ingleses. A secura da aridez das descrições do cenário e das personagens, e dos episódios, que se sucedem num ritmo alucinante, vertiginoso, febril, é apropriada para revelar a feiúra, e a imundície, do universo descrito.

Estão a sofrer os horrores de sua insanidade, nas mãos de homens sãos, e inescrupulosos, além de William Figueras, os náufragos Pino, e René e Pepes, e Reyes (velho caolho, de um olho a vazar plasma pestilento, e que urina em todo lugar), e Louie (um Hércules americano), e Tato, e Hilda (velha decrépita que Arsenio sevicia, sodomiza), e Eddy (estudioso de política internacional), e Napoleão (um anão), e Ida (a grande dama arruinada), e Frances (moça pela qual William Figueras apaixona-se e quase vem a matar ao apertar-lhe, com as mãos, o pescoço, em mais de uma ocasião), e outros tipos humanos doentios, estranhos, cuja condição revela a decadência do espírito humano, um dos aspectos da essência humana, dir-se-ia um dos seus dons, a loucura, a deficiência intelectual, e a mental, que incomoda os sãos, que os faz se atormentarem, sofrerem ao assistir à miséria dos loucos e a tremerem à perspectiva de porventura enlouquecerem. Os tipos humanos dos náufragos expõem o que é o ser humano em sua condição de loucos - e mesmo loucos promovem maldades -; e Curbelo e Arsenio, dois homens sãos, expõem o que há de pior nos humanos: a maldade. Inescrupulosos, ambos: Curbelo, explora um empreendimento ao qual se dedica para extrair o dinheiro que lhe oferece os meios para usufruir de uma vida de conforto e comodidades; e, Arsenio, homem abrutalhado e grotesco, e estúpido, e animalesco, e doentio, maltrata os indefesos internos. E estes dois personagens inspiram-nos a pergunta: Quantos Curbelos e Arsenios há no mundo?

O ambiente do asilo é imundo. A alimentação que aos internos se oferece, pouca, e indigerível: os porcos a rejeitariam, enojados. É o asilo uma ilha, e não a ilha paradisíaca dos contos de aventuras, mas uma ilha infernal, repleta de imundícies e seres diabólicos; e nela os egressos cubanos de outro inferno, o da ilha-cárcere de Fidel Castro, o paraíso socialista, comunista, vivem um inferno.

Na edição que li, da Companhia das Letras, encerrada a história que nos conta Guillermo Rosales, lê-se "Guillermo Rosales ou a Cólera Intelectual.", de Ivette Leyva Martinez, que dá aos leitores a conhecer um pouco da comovente história do desgraçado e infortunado escritor cubano.


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O Mistério da Cripta Amaldiçoada - de Eduardo Mendoza


É de leitura agradável este livro de aventura policial espanhola, ambientado em Barcelona, o herói de Eduardo Mendoza, herói cujo nome o seu criador não dá a conhecer aos leitores, um doido-varrido, interno de um manicômio, e dotado de talento inegável às lides investigativas, e que recebera do delegado Flores a incumbência de estudar um caso, talvez um rapto, escabroso, macabro, misterioso - sob a promessa de ser libertado da instituição de Orates se o solucionasse -, o desaparecimento, do colégio das madres lazaristas de São Gervásio, de uma de suas alunas, e ele o soluciona, mas o que se dá após encerrado o caso não é o ideal, isto é, não são, direi, na ausência de uma expressão, que não encontro, apropriada, moralmente aceitáveis as decisões, que as tomou o delegado Flores, posteriores à solução do crime, que o louco investigador resolve após enfrentar contratempos sem conta e empreender peripécias dignas de Sherlock Holmes, escapulir às garras da polícia, ser bem-sucedido em suas artimanhas, revelando-se, ao ver-se em situações adversas, um homem prático, que sabe fazer uso de prestidigitação, assim direi, para ludibriar os seus perseguidores, impedindo-os de se converterem em seus captores, e usando, tal qual Hercule Poirot, de perfeito raciocínio lógico, de sutilezas, que ele os possui, das quais os leitores ao lerem-lhe os primeiros episódios da aventura jamais aventariam ser ele capaz. Recorreram-lhe aos serviços o delegado e uma freira; entregou-lhe o delegado o caso do sumiço da jovem do colégio das madres lazaristas de São Gervásio, pois era ele, o louco detetive, a pessoa ideal para investigá-lo: ele poderia imiscuir-se em qualquer grupo social, e sem se preocupar, ao desempenhar seu papel, em limitar-se a usar os trâmites legais, e os da polícia oficiais, ficando autorizado, dir-se-ia, a executar ações que não estão impressas nos documentos oficiais da corporação policial, e caso o capturassem, naqueles perigosos anos pós-Franco, ninguém em sã consciência diria que ele, um louco, era um investigador associado ao Esquadrão de Investigação Criminal, e tampouco, que ele agia sob as ordens do delegado Flores. Era ele um homem descartável. Quem em sã consciência associaria um louco esfarrapado, desmazelado, maltrapilho, a exalar fedor nauseabundo, a viver em tugúrios fétidos, um homem que vivia de comer restos de comida que encontrava em latas de lixo e cuja irmã era uma reles prostituta, à polícia espanhola?! Em sã consciência, ninguém.

O caso que o investigador doido-de-pedra, com a percuciência de Poirot e Holmes investiga, o desaparecimento da garota, trouxe à lembrança da superiora do colégio das madres lazaristas de São Gervásio e à do delegado Flores um caso similar sucedido seis anos antes: o desaparecimento de Isabelita Peraplana, filha de um ricaço. Acreditou-se, de início, que Isabelita Peraplana tinha sido vítima de um rapto - suposição descartada assim que, da mesma forma que ela desaparecera, misteriosamente reaparecera. E deu-se o dito pelo não dito; e o caso foi arquivado - e arquivado com ele ninguém mais se incomodou; o novo caso, todavia, com o anterior conservando muitas semelhanças, e envolvendo-o em negras nuvens, que fizeram o delegado Flores e a freira encasquetarem-se, obrigou o delegado a ir até o herói, o louco herói, desta aventura. Havia alguma coisa, o que, ninguém sabia, coisa de todos desconhecida, coisa que todos desejavam saber o que era, e tinha o investigador de descobrir de que coisa se tratava, coisa que interligava os dois casos. Era um mistério. E tal mistério envolvia, além da desaparecida misteriosamente e misteriosamente reaparecida Isabelita Peraplena, o pai dela, e a dela melhor amiga, Mercedes Negrer, e o jardineiro Cagomelo Purga. Caso resolvido, cuidaram regressasse o herói, cujo nome não ponho nas linhas, poucas, desta resenha, porque Eduardo Mendoza, o autor de O Mistério da Cripta Amaldiçoada, malandramente não o registra na sua bem-humorada obra - e tal informação eu já prestei ao leitor, em alguma das linhas acima desta -, ao convívio dos doutores Sugrañes e Chulferga.

É O Mistério da Cripta Amaldiçoada um bom passatempo, imperdível, bem-humorado, a narrativa a desenrolar-se num ritmo adequado para uma aventura policial despretensiosa, que não peca pela negligência do autor, que cuidou do vocabulário, simultaneamente sofisticado e simples, composto de palavras incomuns, umas, populares, outras, e chãs, poucas, a formarem um todo harmonioso, coeso.

Lê-se com agrado as pouco menos de duzentas páginas do livro; as cenas, descritas com clareza, de tão vívidas os leitores as imaginam e nelas se inserem.

Um passatempo imperdível é O Mistério da Cripta Amaldiçoada, de Eduardo Mendoza, livro que li, gostosamente, em um dia.


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Space Ghost - Contra o Homem de Gelo (Space Ghost in: The Iceman) - desenho animado.


Do Planeta Fantasma, cuja existência ameaça-a, do Planeta Gelo, o homem de gelo (bizarro, verde, de cabeça chata), que, disparando-lhe um raio, bloqueava-lhe a luz do Sol, esfriando-o rápida, e ameaçadoramente, a pilotar a nave espacial Cruzador Fantasma, na companhia dos jovens heróis, ele, Jan, ela Jace, e o símio herói, Blip, Space Ghost, patrulheiro do cosmos, voa, denodado, e bravamente, até seu inimigo - que se encontrava no planeta gelado -, enfrenta-o, e é por ele congelado; e liberta-se, e lança um foguete, que penetra no subsolo do planeta, liberando o vapor nele contido, descongelando-o, derrotando, assim, o vilanesco personagem.

Durante o périplo interplanetário, tem de se baterem os heróis com três lobos ferozes e homens de porte avantajado. Ao final, já encerrada a bem-sucedida aventura, está Blip a espirrar, constipado.

Nota: o áudio é quase inaudível. O nome do homem de gelo, que desejava, controlando os elementos da natureza, controlar o universo, é, se entendi bem, e sei que bem não entendi, ou Zilord, ou Zidor, ou algo que o valha. Zilór, Vidór, sei lá.

É este um episódio de desenho animado dos estúdios Hanna-Barbera, produzido a baixo custo, toscamente executado, e que tem o seu charme.


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Mr. Magoo - Jornalista por Acaso (The Nearsighted Mister Magoo - Magoo Makes News) - desenho animado.


É invejavelmente impressionante o dom, ímpar, do velhinho míope - de miopia peculiar - mais simpático e amado dos desenhos animados, capaz de ver o que não há, o que não está diante de seus olhos, distinguindo-o, assim, dos míopes comuns, que não vêem o que não vêem e vêem mal o que mal vêem.

Numa certa manhã, em sua mansão luxuosa, ao ler as cartas que recebera, dentre elas destaca uma, da Companhia Elétrica da Cidade, que lhe informa estar a oferecer-lhe um desconto de 25%, e ele, o velhinho tão inigualavelmente perspicaz, de olhos de águia, na carta lê que está a empresa a cobrar-lhe 25 dólares, um roubo, ele entende - 25 dólares devia ser, naquela época, uma nota preta -, e a ameaçar cortar-lhe o fornecimento de energia. Enfurece-se o simpático, e ranzinza, ancião, pequeno de porte, imenso de indignação; e retira-se, bufando, da sua luxuosa residência, para ir à sede da Companhia Elétrica da Cidade, a cujos diretores iria falar poucas e boas, e cobras e lagartos.

No meio do caminho, afixado à parede de um estabelecimento, tinha uma placa; tinha uma placa, afixada à parede de um estabelecimento, no meio do caminho. E em tal placa, que merece uma poesia, lê-se, e lê-se o que nela está escrito: "Sala de Impressão do Jornal Daily Times Everybody.". E quais palavras em tal placa lê o simpático valetudinário mal-humorado?! Estas: "Companhia Elétrica da Cidade." E não titubeia o pequeno herói, um portento de brava determinação: com a ousadia dos homens valentes, inflexíveis, adentra os domínios da gráfica, vazios, então, e iluminados, e depara-se, se é assim correto descrever a sua postura, com uma placa, na qual lê: "Toque a campainha para gerente noturno." E quais palavras na placa lê-se?! Estas: "Autorizadas unicamente pessoas para operar a máquina de impressão." E uma pequena placa trazia os dizeres: "Perigo. Mantenha distância.". E o ancião, com sua miopia proverbial, singular, lê: "Escada Rolante para falar com o gerente."

Ao reproduzir as palavras inscritas nas três placas e a leitura - seria interpretação livre? - que o sempre elegante Mister Magoo lhes faz, eu te ofereci, leitor, os ingredientes que te permitem criar, em tua mente, as atrapalhadas em que se pôs o querido atrabiliário Mister Magoo. E ele, imagines, leitor, imprimiu uma edição, acredites, do jornal Daily Times Everybody, edição que, todavia, assim que ele se pôs a lê-la, na manhã do dia seguinte, na companhia de Waldo, seu sobrinho, não o agradou - e não me pergunte porquê!

E zangado, contrafeito, retira-se o amado Mister Magoo de sua casa, decidido a soltar os cachorros sobre os editores do jornal.


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Olho Vivo e Faro Fino (Snooper and Blabler in Big Shot Blab) - desenho animado.


O detetive particular Olho Vivo, no seu escritório, faz de gato-sapato Faro Fino, seu assistente, obrigando-o, a explorar-lhe os trabalhos, a constrangê-lo, a desincumbir-se de tarefas humilhantes, até o dia em que ele engole, inadvertidamente, um amendoim, que era, na verdade, e ele o ignorava, um explosivo, um artefato tecnológico ultra-secreto que um cientista, imprudente, e imprevidentemente, acreditando ser sensata sua decisão, para conservá-lo longe das mãos de espiões internacionais inimigos o havia deixado aos cuidados de Olho Vivo, que imprudente, e imprevidente, e inconsequentemente, o tinha deixado sobre a mesa, da qual Faro Fino, ao pôr-lhe ao lado o lanche de Olho Vivo, o apanhara.

Foi um deus-nos-acuda! Ao ver o seu assistente engolir o amendoim explosivo, tratou Olho Vivo de exortá-lo a cuidar não executasse nenhum movimento brusco, nenhum ato impensado, que, redundando em um acidente, viria a detoná-lo. Admirado com a preocupação que seu chefe transparecia, tratou Faro Fino, para se vingar dele, de tirar proveito da situação: pôs-se nas situações mais perigosas, ameaçando explodir-se, e consigo Olho Vivo - assim chantageando-o, fê-lo desincumbir-se de tarefas igualmente humilhantes às que ele lhe exigira. E assim foi, até que se encerrou o episódio, afinal não poderia o episódio estender-se, indefinidamente, ao futuro, e além.

Saiba, leitor, que, embora conserve algumas semelhanças com o Sherlock Holmes e o Doutor Watson, personagens de Arthur Conan Doyle, com os quais têm inegáveis semelhanças, reforço este detalhe, Olho Vivo e Faro Fino deles diferem enormemente: não se respeitam, não se admiram, não são como unha e carne tais quais os dois personagens que compõem a mais famosa dupla de detetives do universo, conquanto tenham eles as suas rusgas.


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Maguila, o gorila - Encrencas na Família (Maguilla Gorilla in Come Blow Your Dough) - desenho animado.


Não há um ser vivo que deseja tirar Maguila, o gorila, grandioso e fortíssimo primata capaz de esmagar todo e qualquer de seus primos os mais evoluídos, os mais hercúleos deles, donos de músculos de ferro, e de aço, que ele verga como se dobrasse borracha, comprando-o ao senhor Peebles, dos domínios da Peebles Pet Shop, de cujas gaiolas, jaulas e outros artigos que servem para aprisionar coelhos, pássaros de incontáveis espécies, e serpentes, e até hipopótamos, elefantes e girafas, quero acreditar, os clientes livram, por amor à vida animal, a estimarem as pequenas e as grandes criaturas selvagens pelos humanos domesticadas. Lamenta Maguila o desamor que seus primos lhe dedicam. E lamenta-se o senhor Peebles, que não consegue se livrar daquele desgracioso gorila, que tantos aborrecimentos lhe causa.

Para surpresa, tanto de Maguila, quanto do senhor Peebles, um dia à loja aparece uma linda, e meiga, e dengosa, e charmosa, e doce, e simpática menina, que, encantada com o símio infortunado, diz ao senhor Peebles que deseja comprá-lo, mas que tem consigo apenas uma pequena moeda; e o senhor Peebles, para a felicidade da pequena e edulcorada menina - e para livrar-se de Maguila -, aceita, sem titubear, e sem regatear, a humilde oferta. E vai-se para casa a feliz menina, a acompanhá-la o gorila, deixando para trás um senhor Peebles a sorrir de orelha à orelha. O destino, todavia, já havia traçado o epílogo de tal história...


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Treme-Treme - O Medo Faz Mal pra Saúde (Hake, Rattle and Roll - Spooking is Hazardous to Your Health) - desenho animado.


Um desenho animado, sombriamente animado, estrelado por três fantasmas, que administram a assombrada hospedaria Haunted Inn, uma casa mal-assombrada fantasmagórica caída aos pedaços, um tugúrio assustadoramente sombrio, tetricamente aterrorizante, às voltas com um rato fantasma, que dos fantasmagóticos proprietários rouba a comida, e com um inspetor de segurança e saúde pública, que, dedicado às suas responsabilidades de funcionário público, vistoria o casarão repleto de criaturas monstruosas e assustadoras, dentre elas o Monstro da Lagoa Verde, o Franskenstein, a Múmia - que se cortara ao se barbear, daí cobrir-se de esparadrapo e gazes -, e outras quiméricas alimárias saídas de contos e romances góticos. É o local assustador; e assustadora é a noite tempestuosa, raios a riscarem o céu tenebroso, água a inundar o hotel.

Um fantasmagórico desenho animado, fantasmagoricamente divertido, do agrado dos fãs de histórias de fantasmas, de vampiros, de lobisomens, de monstros, e das de Mary Shelley, e de Bram Stoker, e de La Fanu, e de Lovecraft, e de Walpole, e de Washington Irving, e de Hoffmann, e de Stevenson, e de Gaiman.

Estão os três fantasmas, que protagonizam as hilárias cenas desta animação, mais para Gasparzinho, o fantasminha camarada, do que para o Cavaleiro Sem Cabeça. E ninguém haverá de contratar os serviços do doutor Egon, do doutor Ray e do doutor Peter para capturar os três simpáticos fantasmas da Haunted Inn. Não queremos dar fim aos divertidos fantasmas camaradas assustadoramente simpáticos.


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Sargento Megera e Recruta Olívia - Manobras em Campo (Tanks a Lot) - desenho animado.


Tem de se haver com a pequena, baixa, gorda, atrabiliária, irritadiça, desgraciosa, a, em outras palavras, menos elegantes, e ainda menos civilizadas, e brasileiríssimas, tribufu, mocréia, baranga, megera Sargento Megera, duas recrutas, a famosíssima, e esqualidamente esguia, Olívia, ela mesma, a amada de Popeye, o marinheiro Popeye, o mais forte de todos os marinheiros que já passaram pela face da Terra e que já singraram os sete mares, inimigo declarado de Brutus, a Olívia, a esguia Olívia Palito, e Alice, que não é das Maravilhas, uma criatura da estatura de Golias, de força descomunal, uma espécie de Pipilota Meia-Longa desprovida de graciosidade, de um tipo estrambótico, esquisito - e é impossível saber de que espécie de criatura ela é -, extremamente estúpida, uma brutamontes exageradamente desgraciosa capaz de esmagar, com um soco, o alter-ego de Bruce Banner, pulverizando-o, sem desmanchar o penteado esmerado e perder das unhas o esmalte; é, enfim, a parceira de aventuras estrambóticas da amada do Popeye uma criatura deveras esquisita.

E eu não preciso, querido leitor, informar-te que Olívia e Alice aprontam das suas - e as das suas são das delas, e não das tuas, leitor querido, que, estou certo, e corrijas-me se eu estiver em erro, também aprontas das suas, que são as tuas, e as tuas, as das suas, são do arco-da-velha.

É inevitável o confronto entre a Sargento Megera e as duas recrutas, inevitável, e cujo fim, no entanto, eu não te conto, leitor, porque é uma peça singular da razão do comandante do exército, ou da sem-razão dele, não sei. Caso queiras saber o fim desta aventura, assistas às manobras, às peripécias, às façanhas das duas donzelas no campo militar, unindo o útil ao agradável: aprender um pouco sobre a arte militar e rir às bandeiras despregadas.


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Hong Kong Fu - Doutor Ninguém - desenho animado.


Nesta aventura misto de suspense policial e aventura de artes marciais, cujo herói, alter-ego de Penry -  faxineiro da delegacia de polícia -, que se faz de alfaiate, e atrapalhado, Hong Kong Fu, desastrado e atrapalhado cão mestre do kung-fu a quem dedica apaixonado amor platônico a bela, esguia, esbelta Rosemary, da delegacia de polícia a telefonista, trajado com os seus indefectíveis quimono vermelho, e máscara preta, que lhe cobre, unicamente, o entorno dos olhos, tem de se haver com um famigerado ladrão de jóias, o Doutor Ninguém, que ambiciona reunir os seis brilhantes da Sidônia, objetos de sua cobiça, ele já de posse, por direito, de um deles, preciosidades que integram a fortuna, cada um deles de um ricaço, de um miliardário, nenhum deles a se negarem a exibi-los, publicamente, como símbolos de suas fabulosas fortunas. O Doutor Ninguém, nas horas vagas um inocente multibilionário, não é um homem qualquer, um vilão que Hong Kong Fu poderia enfrentar, e não apenas a ele se igualar, mas sobrepujá-lo, se não contasse com o auxílio, inestimável, do seu perspicaz gato de estimação, China, que sempre o tira de enrascadas. E assim foi. Coadjuvado pelo seu eterno companheiro felino, leva Hong Kong Fu a bom termo o caso, e regressa à delegacia de polícia, à maravilhar-se com a beleza de Rosemary, uma sílfide.


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O Inspetor - Inspetor em Londres (The Inspector - London Derriere) - desenho animado.


O Inspetor, inspetor da polícia francesa, herdeiro dos talentos dos nobres inspetores franceses e belgas, de porte napoleônico, e dotado de um nariz à Cyrano de Bergerac, modelo exemplar da beleza francesa, a perseguir, de carro, em Paris, de barco, em Veneza, de esqui, em Genova, de bigas, em Roma, um ladrão de jóias que não se lhe deixa capturar com a facilidade com que ele contava, chega, no encalço dele, a Londres, onde a perseguição se dá à pé, e onde ganha, na cabeça, uma bastonada - que o põe, no chão, desacordado -, presente de um fleumático policial londrino, tipicamente britânico, impassível diante das adversidades, que o carrega até à sede da respeitável Scotland Yard, onde o venerável capitão, tal qual o policial londrino, exemplarmente fleumático, que não dispensa o chá da hora do chá, um gentleman, de fisionomia inalterável, pétrea, exorta-o a dispensar, enquanto em Londres, o revólver, cujo uso as leis inglesas proibem. O inspetor francês, a estranhar tão inexplicável norma, no encalço do ladrão de jóias - este, de posse de um revólver e dele a fazer uso, sem que lhe incomodem as autoridades policiais londrinas, quando bem entende - recebe, sempre que, inadvertidamente, dispara um tiro, na cabeça, guardachuvadas, as quais lhas dá o onipresente capitão da Scotland Yard, que surge, indefectivelmente elegante, dos lugares mais inusitados. E para não mais vir a ser golpeado, no cocoruto, pelo capitão, abandona o revólver, e desmunido enfrenta o meliante perigoso e armado. Enfim, encerra-se o caso, não sei se a seu contento; e o capitão da Scotland Yard restitui-lhe o revólver que muita falta lhe fez durante a recheada de adversidades caçada, pelas ruas de Londres, ao ladrão de jóias.

Creio, querido leitor, que tu, ao assistires este episódio do apolíneo inspetor parisiense, apolíneo segundo a estética francesa, além de se divertir com a disparatada aventura, aprenderás a arte da perseguição policial e a da fleumática finura dos sempre elegantes gentlemen ingleses, que muitos erroneamente acreditam serem peças de museu.


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Dominion: The Last Star Warrior - filme.


Embora não tenha uma qualidade que poderíamos destacar, esta produção de não sei qual estúdio cinematográfico toca num tema que faz a cabeça de não poucos nerdes, de não raras pessoas que apreciam ficção científica e de muitas que, não apreciando tal gênero literário, compram a idéia, a da existência de seres que, oriundos de outros planetas, visitam a Terra, nela se instalam, e há milênios, e nela vivem entre os humanos, os humanos a ignorarem-lhes a existência, e, também, a das pessoas que gozam do prazer de, debruçadas sobre calhamaços de documentos secretos, emprender, com seriedade, estudos, ou unicamente com o intuito de satisfazer a curiosidade - mórbida, talvez -, acerca da política internacional, em particular a que envolve operações secretas, casos misteriosos, segredos governamentais e militares, e conspirações - e tais estudiosos rejeitam, de antemão, toda conclusão, por mais plausível, verossímil, que seja, que não os agrade, que não lhes corresponda ao fim que eles desejam, e querem, dar, afinal, eles sabem - é o que a natural perspicácia deles lhes ensina -, os governos e os militares têm o total domínio das informações, manipulam-las ao bel prazer, a todos os seres humanos ludibriando, de todos ocultando a verdade, que está, lá fora, em algum lugar, de todos desconhecida. E esta aventura intergaláctica, que se passa na Terra, a empreender Robert Casey, escritor de livros acerca da vida extraterrena, caçada à verdade acerca da vida extra-terrestre em solo terrestre, conta a participação de alienígenas na história da espécie humana, e desde tempos imemoriais a manipularem a consciência dos homens, a infiltrarem agentes alienígenas nos altos escalões das burocracias estatais, das instituições governamentais, das organizações mundiais.

A Terra, é incontornável o destino, será o campo de batalha de uma guerra interestelar.

Os alfa draconianos, seres maléficos desde tempos imemoriais infiltrados nas sociedades humanas, alteram a história dos homens, conduzindo-os a empreenderem, ignorando o papel que lhes reservaram, a de meros fantoches seus, políticas que lhes são desfavoráveis, até o dia, que rapidamente se aproximava, em que à Terra desfechariam um ataque, para dizimar, dela, a vida, os humanos destinados a assistirem, impotentes, ao evento apocalíptico.

Conta Jalen, um andromedeano, para Robert Casey os eventos que estão fadados a ocorrer dentro de poucos dias, cinco.

Alyssa, a humana pela qual apaixonara-se o andromedeano, capturada por agentes do governo americano, trancafiada no subsolo de uma base militar secreta de um deserto americano, local ermo e inacessível, é submetida a experimentos horrendos, desumanos, do ventre dela extraido o filho de sua união com Jalen.

Os de Andrômeda e os de outros povos extraterrestres, como os de Arcturo, constituem uma aliança estelar; sentindo-se impotentes diante da ameaça que os alfa draconianos - que agora, após milhões de anos a escravizarem os humanos, resolveram desfechar o golpe final, um ataque devastador contra a Terra - decidiram abandonar a Terra ao deus-dará.

Na Terra conservou-se, e por amor à uma humana, o andromedeano.

Os humanos resistem à agressão, em vão. O destino da humanidade já estava traçado: a extinção.

A profecia escatológica não se concretiza, no entanto; não em seu todo, não por inteiro. Os humanos ficam a ponto da extinção, que não se consuma devido à intervenção de seres extraterrenos de boa índole que se dedicam a salvar os humanos remanescentes, e conduzi-los a um planeta, parecido com a Terra, que orbita Arcturus; e em tal planeta os humanos progridem, florescem, e principiam uma nova era de sua história.

Que não me repreendas o leitor: "Tu deste spoiler!" Não, leitor, não estraguei tua surpresa. Não destrui o mistério. O filme, repito, é desprovido do mínimo que se possa chamar de arte. É da escala B, melhor, Z. Só não lhe diminuo a escala porque o alfabeto encerra-se em Z. É uma curiosidade para os nerdes, os giques, os fãs de iscifí. E nada mais. 


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Dick Vigarista e Muttley - Armadilha de Férias (Dastardly and Muttley in Vacation Trip Trap) - desenho animado.


... e à bordo de engenhosas engenhocas aéreas, fantásticas máquinas voadoras, quiméricas maravilhosas da fabulosa arte de voar, um avião-betoneira, e aviões-garras-mecânicas, e aviões-estilingues, e um avião-boliche, e outras aeronaves igualmente extraordinárias, Dick Vigarista, Muttley, Klunk e Zilly voam no encalço de Doodle, o majestoso pombo-correio incapturável, que, a executar manobras aéreas fantasticamente eficientes, infalivelmente escapa às armadilhas que lhe preparam os quatro personagens maléficos que o desejam capturar.

Neste episódio das aventuras do fantástico quarteto aéreo, do general ganha Dick Vigarista duas semanas de férias, que ele poderá gozar, livremente, sem se preocupar em ter de desincumbir-se da vã tarefa, desgastante, e infrutífera, de capturar Doodle, que por ninguém se deixa agarrar, e tampouco terá de aturar Klunk, Zilly, e Muttley, que está sempre a lhe pôr em maus-lençóis e de quem, a ele recorrendo sempre que em apuros, recebe risadas sardônicas, olhares maldosos, e por quem é cruelmente chantageado. Mas pode usufruir de suas férias Dick Vigarista?! Deixá-lo-ão em paz os seus três companheiros de aventuras aéreas?! Eu poderia dizer qual é o desenrolar e qual é o epílogo desta fantástica aventura; não o farei, entretanto: não quero, assim se diz hoje em dia, dar spoiler. Em outras palavras, que acredito mais apropriadas para o caso: não quero estragar a diversão de ninguém. Lamento, apenas, que os irmãos Wright e o Santos Dumont não possam assistir ao espetacular espetáculo que a Esquadrilha Abutre oferece a todos os seres vivos.


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Muttley, o magnífico - Leonardo da Muttley (Magnificent Muttley in: Leonardo de Muttley) - desenho animado.


Sonhador, Muttley, castigado por Dick Vigarista, que manda-o escrever, numa lousa, cem vezes, a frase "Eu vou cuidar só da minha vida.", enquanto cumpre o castigo, sonha, e sonha acordado, com uma história, que o faz ir às nuvens: É Muttley o Leonardo da Vinci, que está a desenhar suas invenções, as quais Dick Vigarista sempre rouba, para ganhar, em vão, os louros da glória, que cabem, ao encerramento do sonho de Muttley, ao Leonardo, o da Vinci, melhor, o de Muttley.


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Formiga Atômica - O Caso do Parque de Diversões (Atom Ant in Amusement Park Amazement) - desenho animado.


Conta o desenho animado uma aventura super-heróica da mais poderosa, e a mais rápida, formiga, tão rápida quanto o Papa-Léguas e o Ligeirinho, e o Pietro Maximoff e o Barry Allen, formiga de cor de cobre, trajada com o seu capacete branco, e identificado com, no peito de seu inconfundível uniforme, um "A" em maiúscula, de "Ant", e não de "Formiga", embora também seja de "Formiga", mesmo não o sendo, pois "ant", em inglês, é, traduzida para o português, "formiga", então "A" é a inicial de "Formiga", mas em inglês, e não em português, portanto, no peito de seu uniforme tem a poderosa e veloz e heróica formiga a inicial de "formiga", mas em inglês, e não em português - e que este detalhe fique bem claro na tua cabeça, leitor, para que tu, ao assistir à aventura da super-heróica formiga, não se coce a cabeça perguntando-se, em vez de se deliciar com o desenho animado, porque tem a formiga, no peito, um "A", e não um "F", se a inicial de "formiga" é "F", e não "A". Ah! Puxa vida! Por que não pensei antes?! O "A", assim, em maiúscula, é a inicial de "Atom", palavra inglesa que, traduzida para o português, quer dizer "atômico", o adjetivo que qualifica, e completa, a alcunha super-heróica da Formiga Atômica.

Encerrada a digressão, imprescindível, mas dispensável, digo-te, leitor querido, o que é do teu interesse saber, mesmo que tu não o saibas: neste episódio tem a Formiga Atômica, com mil tamanduás! de se bater contra o Professor Von Gimmick, que deseja construir, no local destinado à ereção de um parque de diversões, um parque de destruição. E lá vai a triônica Formiga Atômica, do seu formigueiro, lançar-se contra os artefatos bélicos que o Professor Von Gimmick dispara vilanescamente. É o vilanesco Professor um vilão escalafobético, cuja personalidade vilanesca me foge ao entendimento.

Se a Marvel tem o Homem-Formiga, e a D.C. o Capitão Átomo, a Hanna-Barbera tem a triônica Formiga Atômica, que põe os dois no chinelo.


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Albergue Noturno - de Máximo Gorki


Peça teatral cuja galeria de personagens resume-se aos marginalizados, aos desclassificados, aos que a sociedade do convívio dos homens bons excluiu, ou aos que dela eles se excluíram porque, estranhos no ninho, de tão inescrupulosos, violentos, incivis, pessoas que não têm consciência moral e compromisso com a ordem social, a ela não se adaptavam e não desejavam a ela se adaptarem. São sujeitos sem eira nem beira. O autor não enaltece os seus personagens, tipos bandidos, estranhos, descompromissados com a sociedade, e também não os deslustra; limita-se a jogá-los ao proscênio, com toda a crueza e insensibilidade, sem atenuantes, de que é capaz um escritor adepto do materialismo científico, cru, chão, imundo, indiferente ao destino deles, sem lhes julgar a conduta, sem lhes interferir nas ações. Não faz proselitismo ideológico, nesta peça teatral, conquanto seja um adorador dos tiranos comunistas soviéticos. Foi esta a impressão que me deixou o autor. Ele soube pôr no papel tipos sórdidos, vagabundos, ladrões, adúlteros, traidores, assassinos, com a riqueza de tipos que o seu gênio literário lhe permitia, com a crueza realista da sua escola literária, sem reduzir a peça a um panfleto ideológico, tais quais inúmeros que se vêem por aí, obras de escritores desprovidos de talento literário. Talentoso, Máximo Gorki era; e é o seu estilo desataviado envolvente. Não são os seus personagens complexos, sutis; são rasos, brutos, canalhas, o lumpemproletariado, o panteão de heróis marxistas; todavia, na peça do amargo escritor russo-soviético, são descritos sem romantismo ideológico materialista dialético. É o seu estilo de um materialismo opressivo, realista, nu e cru, sem a transcendência ideológica política materialista. Dentre os incontáveis personagens, não há um que seja simpático, tampouco um que personifique, corporifique a, diria um ferrenho prosélito marxista, beleza ideológica comunista - são todos destituídos de graça. Corrijo-me: dentre os inúmeros personagens que movimentam a narrativa, um se destaca, Luca, que, no entanto, perde-se na multidão - devo dizer "coletivo"? -, e é por ela engolido.

A cena final de tal peça é a síntese da desumanidade dos tipos moralmente indigeríveis, indigentes, do amargo universo de Máximo Gorki.


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A Missa do Ateu - de Honoré de Balzac


É Balzac, o pai das balzaquianas, um escritor moralista, profundamente moralista, que não se negou a ver a imunda realidade parisiense, podre, corrupta, que tão bem conhecia, e que jamais fechou os olhos para os tipos humanos sórdidos que dela participavam, e que, igualmente, não deixou de ver - e de idealizar - os seres humanos superiores, nobres, de sentimentos aristocráticos, mesmo que sejam eles das camadas mais baixas da sociedade - e é este o caso deste singelo e magistral conto, que, estendendo-se, por poucas páginas, e com eloquência realista, contida, exibe a mágica arte do autor, a sua maestria literária, conto que narra a história de um homem de gênio superior, Desplein, um médico, ateu convicto - fervoroso, dir-se-ia -, que relata capítulos dramáticos de sua história para um seu amigo, Bianchou, que muito bem lhe quer, após ele o surpreender, em mais de uma ocasião, na igreja de Saint-Sulpice, a assistir à missa. Os leitores de tão singelo e grandioso conto, intrigados, no desejo de saber as razões que conduzem um ateu à missa, acompanham, interessados, a história que o herói de Balzac conta a Bianchou. 

O relato de Desplein, pungente.

Tinha o pobre, miserável Desplein, quando de pouca idade, nos primórdios de sua vida adulta, antes de vir a prestar exames para exercer a medicina, ainda no seu tempo de estudante, a viver em tugúrios, sem eira nem beira, sem a perspectiva de um futuro límpido, promissor, alvissareiro, a comer o pão-que-o-diabo-amassou, a se deparar com dificuldades que trituram todo e qualquer ser humano, seu anjo-da-guarda na pessoa de Bourgeat, que desejava, era o seu sonho, comprar um cavalo e um tonel, sonho, este, que sacrificou ao se dedicar, abnegadamente, durante muitos anos, ao seu jovem protegido, Desplein. Católico, Bourgeat, um legítimo cristão, de bom coração, de coração de ouro, em Desplein vendo um homem de talento superior a ele dedicou-se, de corpo e alma, sacrificando-se heroicamente, a ponto de experimentar tribulações massacrantes, condições de vida miseráveis, sem que jamais se lhe aflorasse à cabeça o desejo de convertê-lo à religião cristã. Ajudou-o por ajudar, porque amava-o, e do fundo do coração, sem reservas. Jamais lhe tangenciou a cabeça cobrar-lhe algum compromisso com a religião. Era Desplein, ele sabia, ateu, e ateu, talvez - e tal detalhe Balzac deixou em aberto - tenha morrido. Não se sabe. Os leitores não sabem o que lhe ia na alma. Bianchou, que o acompanhou até o leito de morte dele, também não sabe. Conquanto ateu, Desplein, além de não desrespeitar o cristianismo, e de reconhecer a nobreza de sentimentos e a pureza da alma e o desprendimento e a abnegação de um fervoroso e autêntico católico, pedia à vida o presenteasse, a ele, Desplein, com o poder de crer na religião cristã, e com iguais vigor e sinceridade à que Bourgeat, seu herói, seu anjo-da-guarda, seu protetor, possuía.

O estilo de Balzac envolvente, cativante, agarra o leitor, pelo pescoço, e, sem impôr-lhe qualquer força, leva-o, de tão sedutor é,consigo.

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