O dia
amanheceu radiante, ensolarado. Ele acordou. E meditou, à escuridão do quarto.
Ouviu cantar um galo da vizinhança. E pouco tempo depois, chegaram-lhe aos
ouvidos palavras de dois bem-te-vis a dialogarem, animados.
Uma cidade de
cento e quarenta mil habitantes conserva os seus encantos. Perdeu muito do seu
aspecto rústico de há cinquenta anos; e não assumiu a figura de metrópole
mastodôntica. Amálgama de duas criaturas distintas, adquiriu aspectos que, não
pertencendo à nenhuma delas, conferem-lhe fisionomia que provoca,
simultaneamente, maravilhamento e estranhamento. Na área urbana, há casas
construídas há cem anos, e outras, de construção recente, erguidas no centro da
cidade, cujo desenho arquitetônico é inspirado nas casas antigas. Os munícipes
conservam muitos costumes antigos, a cultura rústica, e o linguajar do tempo
dos avós, com as suas expressões típicas, acaipiradas, proverbiais. O progresso
industrial e tecnológico influencia, não há o que contestar, os costumes. A sua
força, no entanto, não é tão impactante quanto se diz. Muita gente conserva os
valores antigos – antiquados, dizem os moderninhos –, os quais recebeu de seus
genitores, que os receberam de seus genitores,
que os receberam de seus genitores, e
cujas origens perdem-se no tempo. Superestimado, o progresso encanta,
maravilha, penetra nas casas, e modifica os hábitos dos seus moradores. Que o
progresso tecnológico modifica os hábitos e os costumes, é inegável; que
modifique os valores, é discutível; que altere a essência dos homens, é
questionável - não estou convencido de que a tecnologia insere novos valores
morais e éticos, ou altera os existentes. A internet, dizem sociólogos e psicólogos,
distanciam as pessoas umas das outras, interferem no relacionamento entre elas,
tornam-las insensíveis, frias, desumanas. Conversa para boi dormir, dizem,
hoje, num linguajar de eras antediluvianas, que se perde nas sombras do tempo,
os adeptos da tecnologia. Atribui-se à tecnologia o que ela não pode fazer:
mudar a essência humana. Os tecnofóbicos, para a conservação da espiritualidade
e a renovação da harmonia entre o homem e a natureza, querem a destruição de
todas as máquinas – e jamais reconhecem que estas melhoraram a condição de vida
dos homens.
Na vizinhança,
prossigo, encerrada a digressão, o galo anuncia, altivo, para que o mundo
inteiro o ouça, toda manhã, infalivelmente, o nascer do dia.
Levanta-se da
cama, banha-se, e saboreia, na cozinha, só, um frugal café-da-manhã. Num
solilóquio silencioso, o semblante tranqüilo, pensa: A vida em áreas urbanas,
nesta pequena cidade, conserva muitos aspectos da vida no campo: saudações;
relações pessoais; rusticidade no falar arrastando os erres; carroças rangentes
puxadas por um cavalo cujas ferraduras ressoam no asfalto. Nas ruas, veículos
puxados por um cavalo, quase sempre moribundo, e veículos modernos, de alta
tecnologia, impelidos por dezenas de cavalos. E charruas e rodas de carroças enfeitam
jardins de casas de famílias ricas que vivem, no interior de suas casas, imersas
num oceano de tecnologia - e tais famílias encantam-se, alumbram-se, com a
rusticidade dos mecanismos, das mobílias, das ferramentas, das vestimentas, da
arquitetura, do linguajar rurais de um tempo que não conheceram.
E retira-se da
sua casa. A andar pelas ruas, atento às pessoas, classifica-as: gerentes de
bancos; homens do campo; cabeleireiros; dentistas; agentes imobiliários;
engenheiros; médicos; contadores; professores; arquitetos; vaqueiros;
pedreiros; estudantes; farmacêuticos; mecânicos; serralheiros; policiais.
Algumas delas vergam a indumentária típica da sua profissão; outras, não.
Ao
encerramento do expediente, o Sol posto, a escuridão dominando, ele regressa
para a sua casa. E na manhã seguinte, canta o galo de uma casa da vizinhança. E
durante o dia ressoam os motores dos veículos que abafam a música da natureza,
que ainda resiste ao avanço indiscriminado do progresso.
E seguem-se os
dias.
E o galo a
cantar toda manhã.
E o progresso
ininterrupto...
E o galo a
cantar...
E colidem-se o
rural e o urbano, que se mesclam, e retroalimentam-se.
E a vida
prossegue...
E o futuro a
Deus pertence.
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