quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Três

 A Dona Morte chegou! Tranquem-se nas suas casas! A Dona Morte chegou!


Estava, naquele dia de céu azul-anil, uma ou outra nuvem a viajar, pachorrentamente, pela abóbada celeste, caminhando, a manquitolar, com a despreocupação de uma entidade imortal, a Dona Morte, andrajos pretos, felpudos, e tétricos, a cobrir-lhe a pele apergaminhada, ocultando de todos os seres vivos sua figura agourenta. Pontilhava o asfalto com a extremidade inferior de um bastão comprido, tão preto quanto as vestes que a cobriam e em cuja outra extremidade havia uma foice afiadíssima, quando, à sua direita, chegou-se um carro, desacelerando, e cujo motorista, um varapau barbudo de grossas pestanas, perguntou-lhe: "Ô, Dona Morte, o que a senhora faz por estas bandas?", e ela, voz pausada, ciciante, sibilina, sem se dignar a virar-lhe a cabeça, e sem interromper os passos, respondeu-lhe: "Estou dirigindo-me à cidade Tal." E o motorista pisou, incontinenti, no acelerador, a ponto de afundá-lo no chão do carro. Estava próxima a cidade Tal. Dela distava Dona Morte um quilômetro. Ia tão lentamente a lúgubre senhora, que precisou ela de seis horas e quarenta e oito minutos para entrar-lhe nos domínios; e dela retirou-se três horas depois, a caminhar, claudicante, a pontilhar o asfalto com o bastão, a foice, rubra, a gotejar sangue, e rumou à sua casa, onde chegou à meia-noite.

Na manhã seguinte, ligou Dona Morte o telefone celular, acessou uma página de notícias, e leu o título, que vinha em letras garrafais, da reportagem principal: "Dona Morte matou vinte e dois mil e seiscentos e quarenta e sete moradores da cidade Tal.", seguido do subtítulo, em letras menores: "A pequena cidade Tal, de setenta e cinco mil habitantes, vive uma tragédia sem precedentes. O povo chora a morte de seus entes queridos." E de imediato Dona Morte arregala os olhos, abismada, indignada: "Mentirosos! Eu não matei tanta gente assim, não. Ao chegar à cidade Tal o chão dela já estava juncado de cadáveres. Matei quatro pessoas, apenas quatro. Assumo a responsabilidade por tais mortes. Que as debitem na minha conta. Quanto às outras vinte e duas mil e seiscentas e quarenta e três, debitem-las na do Senhor Medo."

*

Os males covidianos.


Os especialistas, de acordo com o que as pesquisas indicam, descobriram que o covid causa, naqueles que ele infecta, aneurisma, leishmaniose, alergia à lactose, blefarite, bicho-do-pé, astigmatismo, hipermetropia, mutismo, surdez, fotofobia, cegueira, calvície, úlcera gástrica, cólica renal, diarréia, prisão de ventre, impotência sexual, vampirismo, cólera, febre amarela, doença de Chagas, miopia, pressão alta, pressão baixa, disenteria, dente encavalado, estrabismo, tuberculose, síndrome do pânico, alergia à maltose, anorexia bulímica, alergia à sacarose, tecnofobia, hipertensão, varizes, depressão, nanismo, obesidade mórbida, raquitismo, piromania, sonambulismo, atrofia muscular, autismo, esquizofrenia, mal de Alzheimer, elefantíase, pneumonia, anemia, dupla personalidade, transtorno obssessivo-compulsivo, necrofilia, velhice e feiúra. E descobriram, também, que a máscara faz dos feios bonitos, e dos magricelas e dos balofos esbeltos, modelos perfeitos da beleza humana.

*

Convalesci. Estou fora de perigo. Não se preocupem.


Adoeci. De gripe. De resfriado. De febre. Eu aproveitara a promoção, e comprara o pacote anunciado: "Levem cinco vírus pelo preço de um: combo promocional: Covid original, Covid versão Delta, Covid versão Ômicron, Influenza e H1N1. Aproveitem! Cinco vírus pelo preço de um." Aproveitei a oferta. E eu a perderia?! Sou brasileiro; e não perco oferta nunca. Não deixei que se me escapasse por entre os dedos promoção tão generosa.

Acamado, dores de cabeça a afligir-me vinte e quatro horas por dia, febre a queimar-me, em revoltas incontíveis a fauna e a flora estomacais - tão excruciantes as dores que parecia-me que abutres removiam-me as entranhas -, a debilitar-me diarréias, a pressão arterial a gangorrear violentamente. E eu a cuspir catarros, e meus olhos a eliminarem secreção esverdeada em tal quantidade que me colaram as pálpebras, impedindo-me de ver a luz do dia. E assim vivi um dia, dois dias, três dias, quatro dias, a sonhar com a minha convalescência, o que se deu no oitavo dia de ingente sofrimento. Melhorei, a olhos vistos. Foram-se-me as dores, e a febre, e os vômitos, e as diarréias; enfim, melhorei. E piorei. E meu corpo tornou a arder em chamas, e as dores de cabeças regressaram, constantes, ininterruptas, para me atormentarem, e meus pulmões a encherem-se de catarro, que eu tinha de cuspir assim que me subiam à boca. E passaram-se os dias, a flagerarem-me dores atrozes, e pensamentos agourentos a tangenciarem-me a cabeça; e principiei a delirar; e, repentinamente, para a minha surpresa, convalesci, arrefeceu-se-me a febre, atenuaram-se-me as dores. Enfim, convalesci. Melhorei. Era inegável: Melhorei. E piorei. Tornei à cama. Voltaram-me a febre, as dores de cabeça, os vômitos, as diarréias, as oscilações violentas da pressão arterial. E pensei, durante os delírios febris, com os meus botões: "Pela segunda vez, após melhorar, piorei. Basta! Que eu não melhore mais! Nunca mais! Jamais! Quem, sem que eu melhore, eu sare!" Salutar, a auto-sugestão. O poder da mente é extraordinariamente fabuloso! E assim, sem que eu melhorasse, sarei. E sarei bem. Estou pronto para a próxima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário