quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Um filme e um livro

 Ilya Muromets (1956) - direção: Alexander Ptushko


Baseia-se em um conto do folclore russo, de autoria dr M. Kochnev, a estória deste filme, que não tem muitos atrativos. É o seu herói Ilya Muromets (Boris Andreyev), homem de talentos sobre-humanos; a sua força é descomunal; sua valentia, irrivalizada. Está ele, em seu lar, na aldeia Karacharovo, quando guerreiros das estepes, sob o comando do tzar Kalin, (Shukur Burhonov) atacam-la, reduzem às cinzas muitas de suas habitações, e raptam Vassilisa (N. Myshkova). Na sequência, visitam a aldeia arruinada peregrinos que haviam recebido, do espírito do cavaleiro Svyatogor, herói lendário, mítico, uma espada, que eles deveriam entregar ao homem que estava destinado a salvar a mãe Rússia. E Ilya Muromets era tal herói. Ele nada pudera fazer para salvar Karacharovo da selvageria dos invasores porque não tinha os movimentos de seu corpo, os que recuperou assim que bebera um líquido, cujo principal ingrediente era certa erva de propriedades curativas, que os peregrinhos lhe haviam oferecido. Tão logo viram que Ilya Muromets reapropriara-se de sua força, entregaram-lhe os peregrinos a espada que em tempos imemoriais pertencia a Svyatogor. E o herói russo, destinado a salvar a sua pátria, após encontrar seus pais, e pedir-lhes a benção para ir a Kiev - que os guerreiros das estepes pretendiam conquistar -, e deles recebê-la, montou em Burushka, um potro, que o acompanharia em toda a longa viagem, durante cujo transcurso ele cresce, amadurece, encorpa-se, até assumir as formas de um robusto e formoso cavalo preto. E ao chegar Ilya Muromets em uma encruzilhada, corvos apresentam-lhe três caminhos: o que o levaria à riqueza; o que o conduziria ao seu casamento; e o que o condenaria à morte. E o herói decide seguir o que lhe daria um fim trágico. Era um herói Ilya Muromets. Para salvar Kiev, recusou a fortuna e as delícias do casamento. Estava decidido a sacrificar-se numa aventura que lhe exigiria coragem, sabedoria e força de vontade para enfrentar, e superar, todos os obstáculos que encontraria em seu caminho. E seguindo o herói seu curso, depara-se com o pequeno Rouxinol, o Ladrão, um ser disforme, repulsivo, cujo sopro provocava ventanias devastadoras. E o derrota. E segue rumo às terras do príncipe Vladimir (A. Abrikosov) e da princesa Apraksya (N. Medvedeva), onde conhece Dobrynia (G. Dyomin), um herói russo, e outras personagens lendárias. E resgata Vassilisa. E contratempos o fazem ser punido pelo príncipe Vladimir, que manda que o encarcerem num calabouço lúgubre, onde, aprisionado por anos, não morre de fome e sede porque uma toalha de mesa, mágica, que lhe tecera Vassilisa, dá-lhe o alimento e a água de que necessitou durante os anos de cárcerr. E revela-se Mishatychka (S. Martinson), súdito do príncipe Vladimir, traidor, a agir em favor do tsar Kalin. E encaminha a aventura para o seu fim. Ilya Muromets e seu filho digladiam-se, em Kiev, tsar Kalin e oe seus guerreiros a atacarem-la. É sangrenta a batalha. Ao final, aparece de entre as montanhas um dragão de três cabeças.


É o filme aventura, musical, comédia, drama, épico, romance histórico. Contêm em sua fórmula ingredientes destes gêneros e de mais alguns outros. Um dos seus atrativos é a paisagem, vasta, exibida em cenas panorâmicas; outro, o humor, simples, ingênuo - em algumas cenas, involuntário. Tem o filme duas cenas engraçadas, que saltam aos olhos, a graça produzida por erros de produção. Uma se dá num campo, após uma batalha, cadáveres a cobri-lo: um dos cadáveres, supostamente morto, move o braço esquerdo, para, assim me pareceu, remover da testa alguma coisa que o incomodava. Cá entre nós, o cadáver não estava inteiramente morto; não era um autêntico defunto. A outra cena, também em um campo de batalha: um soldado russo a manejar a espada com tal displicência que fiquei com a impressão que o ator que o representava não tinha a mínima idéia do que estava fazendo.

Sei que é o filme antigo, velho de sessenta e cinco anos, e que os recursos cinematográficos do ano de sua produção - e os soviéticos não nadavam, ao contrário do que afirmava a propaganda comunista, em dinheiro - não chegavam aos pés dos atuais, mas os produtores bem que podiam ter caprichado um pouco mais na construção do dragão de três cabeças que dá o ar da sua graça nas cenas finais do filme; parece tal monstro um boneco gigante de carro alegórico de escola de samba brasileiro.

É Ilya Muromets, de Alexander Ptushko, apesar de todos os seus defeitos, que são muitos, e eu decidi mencionar apenas alguns deles, um bom entretenimento.


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A Mulher que Fugiu de Sodoma - de José Geraldo Vieira


Poucos livros agarraram-me pelo pescoço, e soltaram-me só depois de eu ler-lhe a última de suas palavras. A Mulher que Fugiu de Sodoma é um deles. Está vazado num estilo simultaneamente simples e sofisticado, de bom gosto literário. É uma narrativa cativante, o autor a retratar o seu herói com sensibilidade rara, incomum, dedicando-lhe amor e carinho paternais, severo e ao mesmo tempo meigo, a cuidar dele com desvelo, porque sabe - afinal, é-lhe o criador - que ele irá se perder, e sua onisciência fá-lo disposto a compreendê-lo, respeitá-lo, amá-lo.

Narra José Geraldo Vieira a queda do médico Mário Montemor, que se vê em apuros devido ao seu vício em jogos (de azar, para muitos; de sorte, para poucos, os escolhidos; de muita, muita sorte, para os donos da banca). Faltando à lealdade ao doutor Silva Soares, vem Mário Montemor a lhe dever uma soma impagável. Após inteirar sua esposa, Lúcia Montemor, da situação em que se pusera, ela, dedicada, sai em busca do dinheiro correspondente ao valor da dívida que ele contraíra, e teria de arrumá-lo até a data aprazada pelo credor. Recorre Lúcia Montemor à Natália Cordeiro, sua prestimosa e solícita amiga, e à sua tia Marta, que lhe dedica amor inexcedível, e, enfim, à Ana Maria, sua amiga, esposa de Nuno de Almada, empresário miliardário, magnata brasileiro, cuja riqueza se rivaliza com a dos potentados europeus. Bem-sucedida em sua empresa, livra seu marido do apuro em que ele se pusera, mas ele não se emenda. A morte do "Segundo Clichê", menino que vendia jornais, filho de Justiniano, foi, entende Lúcia Montemor, consequência do descaso, da irresponsabilidade de Mário, de quem ela se afasta. Lúcia Montemor recorre à tia Marta, que a acolhe. Ana Maria pede à Lúcia que ela lhe seja preceptora da filha, Leonor, e ela não se faz de rogada e transfere-se para a casa dos Almada. Neste meio tempo, Mário Montemor, após vender alguns de seus pertences, e com o dinheiro da venda saldar algumas dúvidas de jogo, recorre ao seu tio Zózimo, que o repreende, exorta-o a ir à Europa estudar medicina e se compromete a sustentá-lo durante os anos de estudos. Mário aceita-lhe a oferta, e embarca para a Europa, e instala-se em Paris. No início, ele se dedica aos estudos, aprimora os seus conhecimentos; e diverte-se com a modelo Pervanche, de quem se torna amante. Mas não persiste nos estudos; logo perde-se, o jogo o excita; aposta boa soma em corridas de cavalos; contrai dívidas. E morre-lhe o tio Zózimo, que lhe enviava, mensalmente, dinheiro para o sustento. Endividado, sem rumo, reduzido, devido o seu vício do jogo, à miséria, envolve-se com criminosos; encontra moradia na rua. Adoece. Amigos o acolhem, ajudam-lo, dele cuidam. E o que lhe sucede o leitor saberá ao ler o livro.

O leitor percebeu que eu falei de Mário Montemor, mais dele do que de qualquer outro personagem, e concluiu que é ele o herói do drama que nos conta José Geraldo Vieira, e pergunta-se porque é o título do livro A Mulher que Fugiu de Sodoma. É Lúcia Montemor, esposa de Mário Montemor, a personagem que, ausente da maioria dos episódios do romance, está presente em toda a obra, da primeira à última linha, em todos os episódios, pois é a figura dela que Mário Montemor tem em seus pensamentos; ela está nos sonhos dele, nos pensamentos dele; ele a tem consigo todo o tempo. É Lúcia Montemor a personagem central do romance, seu coração, sua alma. Mulher dedicada ao marido, de alma pura, ela recusa a Sodoma que o mundo lhe oferecia, oferta que lhe redundaria, se ela a aceitasse, na perdição da alma. A cena derradeira da sua aventura ilustra a sua rejeição à Sodoma.

É o livro de José Geraldo Vieira, A Mulher que Fugiu de Sodoma, uma obra magnífica, uma obra-prima da literatura brasileira. De leitura agradável. De estilo primoroso. Anima-a personagens cativantes. Em poucas horas de leitura, segui Mário Montemor em suas desventuras dramáticas, narradas com esmero, e simpatizei-me com ele.

Apenas os mestres da literatura conhecem a fórmula mágica da criação de personagens humanos, autenticamente humanos. E José Geraldo Vieira é um deles.




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