segunda-feira, 15 de março de 2021

Quatro mais um conto

 Os Fiquem em Casa, sejam eles funcionários públicos, sejam da iniciativa privada, desde há um ano, no início da fraudemia, sacrificando, corajosamente, seu lazer, dispuseram-se a conservarem-se em suas casas, onde usufruem de bens materiais, conforto e luxo que o capitalismo oferece. E estamos certos de que eles, seres abnegados, cuja empatia pelas pessoas que, agora desempregadas devido ao fechamento do comércio, recebendo, cada uma, todo mês, R$ 600,00, dispõem-se, com generosidade inspiradora, a entregar, de sua renda mensal, a parcela que exceda R$ 600,00 aos governadores e prefeitos, para que eles, administradores conscienciosos, a distribuam ao povo reduzido à miséria.

*

Esta é a hora certa para os socialistas, esquerdistas, comunistas, anti-capitalistas, lídimos defensores da igualdade de renda, praticarem as suas valiosas teorias. Os que têm renda mensal superior a R$ 600,00 que reservem cada um para si mesmo, todo mês, R$ 600,00, e distribuam o restante às pessoas reduzidas à miséria. Que não percam tal oportunidade, que é imperdível, de provarem para todo o mundo, principalmente aos ímpios, que o belo ideal, o socialismo, que tão árdua, e apaixonadamente, defendem, produz, praticado no mundo real, a justiça social e a extinção das desigualdades apregoadas em seus nobres postulados.

*

Os Fique em Casa sempre tiveram, para unir o útil ao agradável - impedir a disseminação do corongavírus e usufruírem, em suas casas, de todo o conforto material que o capitalismo oferece -, a opção de estocar comida enlatada e tambores de oxigênio que os sustentem durante dois anos, trancar, à chave todas as portas, e vedá-las, e vedar, também, as janelas, e arremessar as chaves na privada e apertar a descarga; todavia, irresponsáveis e imprevidentes, não providenciaram tais recursos, saíram de suas casas quando os calças apertadas e os calcinhas apertadinhas afrouxaram as restrições e permitiram a abertura do comércio, e foram às compras, ao shopping, ao clube, ao parque, passear ao ar livre, à academia; e fizeram mais, e pior!: efetuaram compras, via dispositivos móveis, de alimentos, produtos de primeira necessidade, bugigangas eletrônicas, e guloseimas, que não podem faltar nas prateleiras e geladeiras de seres tão destemidos, e os receberam, nas portas de suas casas, das mãos de motoboys e outros trabalhadores, pessoas de quem tanto dependeram e que tanto desprezam. Providenciassem as comidas enlatadas e os tambores de oxigênios e vedassem suas casas, hoje estariam tranquilos, despreocupados, aconchegados nos seus lares, humildes lares. Não gozam de paz e temem serem infectados pelo corongavírus porque foram insensatos. Portanto, se querem xingar alguém, que xinguem a si mesmos.

*

No dia em que os motoboys e outros entregadores cruzarem os braços e declararem "Retomaremos o nosso trabalho quando todo o comércio estiver aberto.", os Fique em Casa, lockdownistas, se borrarão, de medo, nas calças, e suplicarão aos calças apertadas e aos calcinhas apertadinhas a imediata suspensão do lockdown.

*

O sobrinho mais velho que o tio.


Estavam, na casa dos senhores Silva, Pedro e Maria, anciãos nonagenários, comemorando o aniversário natalício do patriarca, dezenas de familiares e amigos. O ambiente, animado, contagiante. Dentre os presentes, João, irmão de Pedro, idoso octogenário, de cabeça quase que inteiramente desprovida de cabelos, sendo brancos lácteos os poucos que lhe restavam, e Renato, filho de Pedro, de cinquenta e dois anos, dono de vasta cabeleira branca. Conversavam, na companhia de outros familiares, parentes e amigos, descontraidamente. Em um momento da conversa, Renato perguntou ao seu tio João: "Tio, o senhor tem oitenta e cinco anos, ou oitenta e seis?" E respondeu-lhe seu tio: "Oitenta e cinco." Renato, então, comentou, simulando constrangimento: "Oitenta e cinco. Puxa! Os homens da sua geração, tio, são mais bem conservados do que os da minha. Veja... Eu, por exemplo, sou vinte e três... trinta e três anos mais novo do que o senhor, e, agora, olhando para o senhor, sinto-me mais velho." Fez uma pausa; e um bom número de par de olhos o fitaram, na expectativa, esperando, dele, a conclusão do comentário. E assim que se deu por convencido de que criara o ambiente apropriado para arremetar seu discurso, disse Renato: "É verdade, tio. Sinto-me mais velho do que o senhor. Veja bem... Olhe para a minha cabeça: Eu tenho mais cabelos brancos do que o senhor." E todos caíram na gargalhada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário