quarta-feira, 8 de março de 2023

Cinco resenhas

 A Desejada das Gentes (Várias Histórias) - de Machado de Assis


Tem este conto uma estrutura distinta da dos outros quatro que já tratei (A Cartomante; Entre Santos; Uns Braços; e, Um Homem Célebre). Resume-se a um diálogo entre dois homens cujos respectivos nomes o autor não revela, sendo que um dos homens narra a história de Quintilia, bela moça, a desejada, que inspira paixão irresistível nos espécimes masculinos do homo sapiens, incapazes de lhe resistirem aos atrativos. É Quintilia celibatária, que, qual fortaleza inexpugnável - assim a ela se refere o autor, em um certo momento -, não sucumbe às abordagens de seus inúmeros pretendentes, sendo um deles o homem que narra a história dela para o seu, dele, interlocutor, este, sua curiosidade atiçada pela narrativa, interessado no desenrolar do drama.

O personagem que, tomando a palavra, conta o conto, e um seu conhecido, João Nóbrega, colega de escritório, chegam ao entendimento de, antagônicos um ao outro, concorrerem pela conquista da bela e desejada Quintilia, mulher pela qual ambos apaixonam-se, e, acirrada a competição entre eles, vem eles a se desentenderem, e, consequentemente, a romperem relações. E João Nóbrega transfere-se para os sertões da Bahia, a desincumbir-se de afazeres de juiz municipal, e em terras baianas vive o restante dos seus anos de vida, Quintilia a ocupar-lhe os pensamentos. Para o personagem - agora sem o seu rival - que conta a história da desejada das gentes, está livre o caminho ao coração da mulher cobiçada; todavia, ele não é bem sucedido em seu projeto: a fortaleza inexpugnável, Quintilia, resiste-lhe à abordagem. Em morrendo seu pai, o narrador permanece quatro meses em Itaboraí. E de Quintilia morre o tio com quem ela vivia. Pede o protagonista em casamento Quintilia, que não se revela interessada em se vincular, numa cerimônia nupcial, a ele. Ela lhe diz que dele quer ser amiga e que as suas relações com ele se resumam à amizade, e jura-lhe que jamais se casaria. Chega o dia, no entanto, em que ela se engraça com um diplomata austríaco, que, sob influência do protagonista, que urdira uma trama para dela afastá-lo, não lhe corresponde ao amor. E Quintilia adoece. E com ela estreita relações o personagem que dela conta a história. E Quintilia definha. Dá-se o enlace matrimonial entre Quintilia e ele, ela às portas da morte, dois dias antes de ela falecer, e só então ele a abraça. 

Interessantes estes pontos da história machadiana: Quintilia, que não queria se casar, rejeitava todos os homens que lhe propunham casamento, e seu tio não queria que ela se casasse; e, a referência ao fisiologismo pelo interlocutor do personagem que conta o drama da desejada das gentes. Pontos que me inspiraram duas interrogações: Qual era a natureza do relacionamento entre Quintilia e seu tio? Tinha Quintilia alguma ojeriza ao contato íntimo, o mais íntimo que o corpo de um homem e o de uma mulher podem realizar? A discrição, a sutileza de Machado de Assis, sempre reticente, contido, permite ao leitor aventar várias conjecturas para estas duas perguntas, ciente o leitor de que nenhuma certeza tem se dentre elas alguma seja a resposta correta, a que, estando na cabeça do Bruxo do Cosme Velho, encontra-se além do alcance dos humildes mortais.


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A Causa Secreta (Várias Histórias) - de Machado de Assis.


Não é Machado de Assis um escritor para leitores desatentos e apressados, destituídos de suspicácia. Ele pede leitores sagazes, capazes de captar as sutilezas das tramas por ele urdidas e paciência para acompanhar-lhe a descrição contida, discreta, do que vai na alma de seus personagens, os sentimentos que os movem, o que lhes vai, oculto nos escaninhos do espírito, inacessível a eles mesmos. Em A Causa Secreta, o sexto conto enfeixado no volume Várias Histórias, dá o Bruxo do Cosme Velho uma pequena amostra de seu talento, raro. Não é ele, neste conto, e nos cinco que o precederam, um psicólogo a analisar, detidamente, e com profundidade iluminadora, as suas criaturas, dissecando-lhes as taras, os traumas, expondo-as, por inteiro, aos seus leitores. Limita-se a descrevê-los, em rápidas pinceladas, e a narrar-lhes, num estilo todo seu, singular, as aventuras, com saudável dose de comentários irônicos, e sarcásticos, e menções a heróis da literatura e da história, sejam eles monarcas, músicos, dramaturgos, enfim, pessoas cujos nome e obra os livros registram. Não se perde nos inextricáveis labirintos psicológicos de seus personagens, pois ele não os adentra; não lhes envereda pelos domínios dantescos do subconsciente. Descreve, deles, o que está no rosto, na pele, iluminado pelas ações que eles empreendem.

São três os protagonistas deste conto, Fortunato Gomes da Silveira, e Maria Luiza, sua esposa, e Garcia, médico.

Dos três, é Fortunato o personagem que o Bruxo, nele concentrando sua atenção, descreve direta, e, por meio de Garcia, indiretamente. Maria Luiza descreve-a Machado de Assis não em função de si mesma, mas como um recurso do qual ele se apropria para inspirar ao leitor suspeitas acerca do caráter de Fortunato, reforçando, assim, as peculiaridades únicas do tipo que ele representa - descreve-a, para descrevê-lo.

Há, neste conto, e no A Cartomante, e no Uns Braços, um tema recorrente nas obras de Machado de Assis, caro a ele, o do adultério, o do homem seduzido por uma mulher casada. No A Cartomante a relação ilícita se consuma; em Uns Braços, há o amor platônico, num misto de ingenuidade, inocência, e luxúria. E neste A Causa Secreta, indica a narração, Garcia apaixona-se por Maria Luiza, e entre eles há um acordo tácito acerca dos sentimentos de ambos e das suspeitas mútuas: Maria Luiza não corresponde ao amor que Garcia lhe dedica, e lhe não realiza os sonhos idílicos.

Em se tratando de um conto do criador de Capitu, tem o leitor de redobrar a cautela, e não se precipitar em conclusões apressadas.

Estreitando os laços de amizade e confiança, Garcia e Fortunato associam-se num empreendimento, uma Casa de Saúde, de cuja administração assume Fortunato a responsabilidade, desincumbindo-se de suas atividades com dedicação, desenvoltura e eficiência incomuns. E estuda Fortunato anatomia e fisiologia. E envenena gatos e ratos. E para horror de sua esposa e de Garcia, numa exibição de indiferença, sadismo, mutila, com uma tesoura, no gabinete de sua casa, um rato, levando-o ao fogo, provocando-lhe morte lenta e dolorosa.

Na cena derradeira, Fortunato exibe sua personalidade desprovida de nobreza, e traços de indiferença, insensibilidade, personalidade destituída de sentimentos, diremos, humanos. Revela-se um tipo frio, calculista, desumano, de quem tem em todo os seres vivos unicamente objetos inanimados que servem às suas veleidades científicas. Traços de personalidade que dele traduzem a desumanidade, fazendo-o dócil aos horrores que o ser humano já testemunhou, indiferente às dores e aos sentimentos alheios. É Fortunato uma criatura que apoiaria, para atender à sua curiosidade científica, assim direi, os mais horrendos experimentos promovidos pelos famosos doutor Frankenstein e doutor Moreau, e pelo célebre doutor Mengele. É Fortunato um emblema da crueldade humana. Pessoas de seu tipo favorecem o avanço de políticas desumanas, de extermínio, afinal, para elas todas as coisas são meros objetos de estudos.


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Trio em Lá Menor (Várias Histórias) - de Machado de Assis.


Conto dividido em quatro capítulos curtos (Adagio cantabile; Allegro ma non troppo; Allegro appassionato; e, Minuetto), narra a história de Maria Regina, que se enamora de dois homens, ambos enamorados dela; um deles, Maciel, moço de vinte e sete anos, bonito, nem culto, nem inteligente, dotado de bons sentimentos, temperamento generoso, simplório, conversador, amigo de miudezas, que, certa ocasião, em ação de inegável desprendimento de si mesmo, lançou-se à frente dos cavalos de uma carruagem em que iam Maria Regina e sua avó, para salvar um menino, caído, de um atropelamento, cena, esta, testemunhada pelas duas ocupantes da carruagem; e é o outro, Miranda, homem já na idade de cinquenta anos, taciturno, macambúzio, de coração de pedra, incapaz de um gesto de simpatia. De Maciel admira Maria Regina o ato heróico e a beleza e os bons sentimentos. Com Miranda tem ela afinidades espirituais e gostos comuns; ambos amam música; e ela admira-lhe o espírito de erudito, de homem agraciado com o gosto pela vida intelectual. Enamorada de Maciel e de Miranda, identificando em ambos virtudes admiráveis, naquele, a beleza e a espirituosidade, neste, a formação intelectual primorosa, não se decidia por nenhum deles. Admirava-os. Nenhum deles, todavia, atendia ao ideal de homem que ela, em sua imaginação ínfrene, concebia ao fundir as virtudes que identificava em ambos.

Conta o conto a sem-razão de uma alma dotada de imaginação desordenada, indisciplinada, perdida em fantasias que pecam pela impossibilidade de concretização delas, uma característica que, não sendo incomum aos homens, pode angustiá-los, ou pode satisfazer-lhes o espírito, mesmo que sejam elas irrealizáveis - e talvez por esta razão. É paradoxal: a pessoa, a viver no seu universo onírico particular, que a faz feliz, e cuja origem está além do seu entendimento, satisfeita com o ideal que sua mente, atendendo-lhe aos anseios da alma, engendra, sofre.


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Adão e Eva (Várias Histórias) - de Machado de Assis


Reunido, com outros quinze contos, no volume Várias Histórias, reforça este conto uma idéia, inspirada na leitura deste volume de contos, que me ocupa, desde que me pus a ler, melhor, reler, os contos do Bruxo do Cosme Velho: é Machado de Assis um escritor criativo, de fértil imaginação. Ao contrário dos escritores aos quais os críticos literários atribuem imaginação fértil e criatividade ímpar, escritores de narrativas de aventuras rocambolescas, de façanhas heróicas, de comédias, e de tragicomédias, que agradam os leitores, enfeitiçados pelo entrecho recheado de tramas instigantes, maquinações diabólicas, intrigas complexas, o criador do Simão Bacamarte, de temperamento contido, cerebrino, elabora tramas comuns, e não originais, dir-se-ia, e a elas dá um toque único, aqui, sim, original, todo seu, inconfundível. O estilo machadiano de fazer literatura não permite que o leitor se empolgue com a leitura, que ele dê asas à imaginação: o estilo do Bruxo exige leitor atento, perspicaz, sutil, irônico. Se o leitor  desvia, por um segundo que seja, da leitura, sem que a interrompa, a atenção, e perde-se, neste um segundo, em devaneios - é infalível -, de si escapa o fio da meada. Ao perceber que sua mente, durante a leitura - que leitura, na verdade, não foi -, escapuliu, contra a sua vontade, por um buraco-de-minhoca, para outra dimensão, o leitor, sua mente de regresso à nossa dimensão, se movido pelo desejo sincero de entender, saber o que lê, obriga-se, para que possa se reapossar do fio da meada perdida, a reler as linhas que, à primeira leitura empreendida, estiveram além do alcance de sua consciência. É este o fardo que os leitores do pai do Quincas Borba têm de carregar. E só os fortes sobrevivem ao final da jornada.

Neste Adão e Eva, estão reunidos, à mesa, na casa de D. Leonor, esta senhora, dona de engenho, e seus convidados, sendo os principais, dois, Frei Bento, carmelita, e Sr. Veloso, juiz-de-fora, este, espirituoso, bem-humorado. A anfitriã oferece aos seus convidados ilustres doces, que o Sr. Veloso degusta, cobiçoso deles. E é este senhor o centro das atenções. Ele principia a narração de uma história, cujos protagonistas são Adão e Eva, e com ela prende a atenção dos convivas. É a história, declara o Sr. Veloso, apócrifa. Para surpresa de seus amigos, diz ele que foi o Diabo quem criou o mundo, e não Deus, que se limitou a corrigir-lhe a obra. Na obra do Tinhoso, o homem e a mulher não tinham almas; Deus, então, não concordando com o que viu, presenteou-os com alma e bons sentimentos. E enfureceu-se o Diabo com tal ousadia; não podendo, no entanto, enfrentar Deus, mandou a serpente que fosse ao Eden, e seduzisse Adão e Eva, e, com voz melífluas, palavras cativantes, persuadisse-os a comer do fruto do Bem e do Mal, que a eles, por decisão divina, estava inacessível. A serpente, que odiava o casal de humanos, atendendo, prontamente, à ordem diabólica do Tinhoso, foi, prelibando de prazer imensurável, até Eva, e falou-lhe, insinuante, do fruto proibido, e profetizou-lhe, se ela o ingerisse, um futuro grandioso, mas ela resistiu à tentação. Aqui, vê-se, o caso não corresponde ao relato bíblico. E o Sr. Veloso não encerra a história. Dando-lhe sequência, informa que Deus envia ao paraíso o arcanjo Gabriel, incumbindo-o de conduzir o casal humano ao céu, para gozarem Adão e Eva da bem-aventurança eterna. E encerra seu conto o Sr. Veloso. Mas o conto que Machado de Assis conta ainda não se encerrou; para conhecer-lhe o desfecho, tem o leitor de ler mais algumas linhas; e se não as ler com a atenção e a sagacidade de espírito que o Bruxo do Cosme Velho lhe exige, não irá usufruir do prazer espiritual, intelectual, que as derradeiras palavras do Sr. Veloso oferecem.


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O enfermo (Várias Histórias) - de Machado de Assis


Neste conto, mergulha o pai da Academia Brasileira na confusão moral de Procópio José Gomes Valadares, seu herói. Após a morte do coronel Felisberto, que, na altura de seus sessenta anos, a flagelá-lo várias moléstias, dentre elas reumatismo e aneurisma, homem rabugento, e mau, que vivia a desancar os enfermeiros por ele contratado, Procópio, o último deles, o que lhe testemunhara o último suspiro, confuso, sem saber se ele, para usar uma expressão popular, que não é elegante, e que acredito imprópria no momento, batera as botas, quis reanimá-lo.

Está a narração do drama de Procópio em primeira pessoa - e é Procópio que está a narrá-lo para um personagem cujo nome o autor ao leitor não revela.

Durante os anos de convívio com Procópio o coronel Felisberto destrata-o, desanca-o, maltrata-o, ofende-o, arremessa-lhe tigelas, dá-lhe bengaladas no lombo, a ponto de, de tanto maltratá-lo, inspirar-lhe o desejo, e em não apenas uma ocasião, de ir-se embora; o desditoso, infortunado Procópio, todavia, conserva-se, na casa do coronel Felisberto, à solicitação deste e do padre de Niterói e do vigário, para cuidar dele.

Machado de Assis insere dois dados que inspiram ao leitor a antevisão do desenrolar da história e o seu desenlace: o coronel não tem herdeiros; e, após três meses de convivência com Procópio, deixa testamento.

O leitor que se precipita ao antecipar em imaginação o encerramento da trama surpreender-se-á com a cena da morte do coronel Felisberto, tragédia inesperada que se dá, num acesso de raiva dele, durante um embate físico entre ele e Procópio. E é esta cena que dá o tema do restante do conto. Procópio envolve-se em elucubrações, que o perseguem durante dias, mesmo após ele ir-se ao Rio de Janeiro, distante da vila onde vivera com o coronel Felisberto. Atormenta-se. Teme que lhe imputem o assassinato. Ameniza as censuras que se fazia ao ver no caso uma coincidência fortuíta entre a sua ação e a morte do coronel: o finado, independentemente do episódio que o levara desta para a melhor, tinha poucos dias de vida, estava com um pé na cova; portanto, ele, Procópio, nenhum papel tivera na morte dele. Culpa-se, e desculpa-se, Procópio. Esforça-se para não se dar como culpado pelo crime. Perturbam-no alucinações. E revela-se o teor do testamento do coronel Felisberto: É Procópio seu herdeiro universal. E mais razões há para ele se preocupar. Dias antes, desesperado, dera esmolas aos pedintes, espórtula à Igreja, pedira missa por intenção do finado, para desengano de consciência, quase subjugado pela culpa que carregava, pelos torvelinhos de pensamentos, que se lhe entrechocavam no espírito a ponto de lhe darem fim ao equilíbrio moral e roubarem-lo à sanidade. E para atenuar sua culpa elogia o coronel aos que o ouviam, o barbeiro, o boticário, o escrivão. E regozija-se com os relatos que do finado lhe dão, todos a apontá-lo como um tipo reles, execrável. Enfim, despede-se Procópio do destinatário de seu testemunho, pedindo-lhe, morrendo-lhe antes, um epitáfio que contenha uma emenda ao Sermão da Montanha.

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