quarta-feira, 16 de março de 2022

Duas notas breves

 A Cultura do Cancelamento


Não é a cultura do cancelamento um fenômeno moderno; é antigo, bem antigo; retrocede até o tempo dos filósofos da Grécia, há dois mil e quinhentos anos. Platão registra, na Apologia de Sócrates, os derradeiros momentos da vida do pai da filosofia ocidental; Sócrates, além de não seguir a cartilha, digo, politicamente correta daquele distante período da história da civilização, trazia à superfície, e ao conhecimento de todos, a ignorância dos sábios seus contemporâneos, pessoas que se autointitulavam senhores do universo, demiurgos contemplados, pelos deuses do Olimpo, com a omnissapiência; gente que se arvorava entidade superior, sobrenatural, de dons superiores às divinas; pessoas que, diante daquele feioso que se sentava nas escadarias dos templos e das praças da Grécia e dedicava, não apenas um dedo, mas muitos, muitos dedos, de prosa com os seus conterrâneos, expondo a incultura e a ignorância, e a pouca, ou nenhuma, inteligência dos dignatários de então, sentindo-se inferior a ele, e reconhecendo-lhe a superioridade intelectual e a moral, decidem aniquilá-lo, não por meios honestos, pelo confronto de idéias, o que eles não se atreviam a fazer, e tampouco por meios violentos, assim não se expondo ao povo como seres autoritários, mas, num simulacro de Justiça, o destino dele traçado antes do início do julgamento, condenando-o à morte. E ele, o mestre de Platão, o emblema da filosofia ocidental, Sócrates, bebeu de um copo cicuta, e partiu desta para a melhor, o mundo dos espíritos, onde até hoje ele palestra com sábios de seu porte. "Cancelaram-no" os potentados daquela época.

Os artífices de um mundo perfeito, um mundo melhor, um novo mundo, entidades celestiais, que desde que o mundo é mundo almejam fazer todos verem o que eles querem que todos vejam seja o que for o que eles querem que todos vejam e curvarem-se, reverentes, diante deles, "cancelam" todos os indivíduos que ousam, antes de tudo, respeitarem cada qual sua consciência. Querem os senhores do universo fazer com que as pessoas não percebam o mundo como ele é, mas vê-lo com a figura que eles lhe emprestam. E para impôr sua política, que, sabem, não têm nem sequer um pé na realidade, contam com milhares de militantes profissionais, muitos deles regiamente pagos, e incontáveis idiotas úteis, facilmente sugestionáveis, autômatos descerebrados, servis sem saber que o são, insanos, dispostos, porque destituídos de razão, de sentimentos humanos, a eliminarem toda e qualquer pessoa que, dizem-lhes os senhores do universo, contraria os cânones sagrados do politicamente correto, que trará à escuridão a luz - e os idiotas úteis acreditam-se donos da verdade, abnegados paladinos da Liberdade e da Justiça, denodados e aguerridos guerreiros do bem-estar social, do fim das injustiças, das censuras, e não percebem que estão a fortalecer os agentes da opressão, do fim das liberdades individuais, da extinção da Justiça e da criação de um maquinário de extermínio da vida humana. E são tão ferozes, tão bárbaros, tão insanos, tão desprezíveis tais seres saídos das trevas, os "canceladores", que eles, sanguissedentos, arrostam, violentamente, um jogador de vôlei, um artista qualquer, um tenista, um ilustre desconhecido que se atrevem a externar, publicamente, uma opinião, que não está contemplada na agenda politicamente correta, e sonham, felizes, vê-las a expirarem nos estertores da morte.

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Dom Quixote. Nota breve.

Conversando com os meus botões, um deles aventou uma hipótese, que me deu o que pensar: seria Dom Quixote o crepúsculo de uma era, o da cavalaria andante, era que Miguel de Cervantes Saavedra, nostálgico, via a desaparecer da história da sua amada Espanha, e Sancho Pança, o fiel escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura, a era, que se descortinava, materialista, interesseira, e Dulcinéia Del Toboso, a mulher que, perdida, conservava, em seu espírito, a beleza, anímica, que encanta os homens, a entidade que merece respeito, e reverência, porque é o útero em que se gera vidas, e os príncipes, que, jocosos, descompromissados, trocistas inconsequentes que em nada evocavam os nobres reis de antigamente, do mundo que ruía diante dos olhos dele, Miguel de Cervantes Saavedra, um homem, apenas um homem, que nada podia fazer para impedir o avanço impiedoso de um mundo, que o descontentava, um mundo mais poderoso que ele, e ele, impotente, ao criar tais tipos humanos, a conservar, na memória, para o seu agrado, sua querida Espanha, que desaparecia, deu à posteridade a idéia, que fazia, da transição da era áurea, que se perdia, para a da decadência, que se anunciava desavergonhadamente? E é Rocinante os alicerces da era que Cervantes sonhava preservar, mas sabia fadada ao perecimento? Não digo que Miguel de Cervantes Saavedra pensou o que vai nas linhas acima; digo que ele presenciou o que ocorria no seu tempo; e sentiu a perda do que ele estimava, do que lhe era caro, e que, impotente, ele não podia conservar; limitou-se a retratar o fenômeno cultural, civilizacional que, ignorando-o, desenrolava-se diante dos olhos dele. É Dom Quixote de La Mancha uma alegoria?

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