quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

7 livros e 2 gibis

 Aventuras do Senhor Cryptogamo, de Alfredo Moraes Pinto, e Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro sobre a picaresca viagem do Imperador de Rasilb pela Europa.


Dir-se-ia duas revistas em quadrinhos a obra de Alfredo Moraes Pinto e a de Raphael Bordallo Pinheiro, ambas ricamente ilustradas - e são as ilustrações que acompanham os textos enormemente cômicas. Ou são os textos que acompanham as ilustrações?! Ambas as duas obras são do crepúsculo do século XIX. A primeira, uma aventura picaresca, jocosa, de um caçador de borboletas apaixonado pelas borboletas, e não pela sua noiva; a segunda, uma peça - picaresca, está no seu título - difamatória, cujo alvo é o Imperador Dom Pedro II - e é Rasilb acrônimo de Brasil -, que o autor ridiculariza, achincalha, reduz, e maldosamente, à figura de um pateta, de um paspalho, de um azêmola ridículo, desgracioso.

A primeira aventura conta a história do Senhor Cryptogamo; a segunda, a de Pedro de Pampulha, imperador de Rasilb.

O Senhor Cryptogamo, dedicado à sua paixão, caçar borboletas, negligenciava sua esposa, Elvira, por ele doentiamente apaixonada, e de cujos braços ele desejava escapar. Com artifícios inúmeros, ele foge às dela mãos sedosas, para ele garras afiadas, mas ocorre, infalivelmente, de ela acidentalmente ir ter com ele, para gostosura dela e desgosto dele. O destino sempre os reunia, para contrariedade do aventureiro desaventurado, que, aventurosamente, vem a ser engolido por uma baleia no interior de cujo estômago conhece uma bela minhota, que o faz esquecer-se, enquanto nos braços dela, de Elvira, e com ela casa-se. 

É a aventura do nosso herói comédia dramática e épica e trágica. Comédia, porque as desventuras do afortunado e desafortunado Senhor Cryptogamo é rocambolesca. Dramática, porque sofre a desprezada Elvira, que não tem do herói correspondido seu amor por ele, e porque sofre o herói para se desvencilhar dela. Épica,porque depara-se o herói, um Édipo, com perigos sem conta: enfrenta piratas, árabes e uma baleia. Trágica, porque encontra Elvira um fim... trágico; e o fim da história para o herói é... trágico.

Deu na telha do Imperador de Rasilb, Pedro de Pampulha, sair para conhecer o mundo, com dois objetivos: encontrar povos que o admirem; e, sábios que lhe digam palavras quaisquer. Antes de de seu império partir em viagem, deixa regente sua filha, a Princesa Zuzu-Bibi-Toto-Fredegundes-Cunegundes etc. Estuda dicionários de idiomas e catálogos das coisas de outros povos. E parte, para ver o mundo, com dezesseis mil e duzentos réis na algibeira. Vai à Alemanha, à França, à Inglaterra, à Itália, à Grécia, e à Ásia, e ao Egito, e à Palestina, e ao Valle de Andorra Júnior. Assiste às filarmônicas; adoece, e vive em quarentena; tem contato com professores árabes, e de anedotas e inscrições; e com sábios joga partidas de petisca; e visita sociedades científicas e de belas artes; e dança can-can; e lava-se num chafariz; e hospeda-se numa estalagem; enfrenta, enfim, mil e uma vicissitudes, que fazem a graça da sua história, uma desgraça.

As duas obras, que podem ser chamadas de livros ilustrados, tão ricamente ilustradas, as ilustrações a animarem o texto - ou o texto a animarem as ilustrações -, que se assemelham às modernas revistas em quadrinhos. Duas curiosidades literárias e históricas agradabilíssimas.


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As Aventuras de Tintim, repórter do Petit Vingtième, no país dos sovietes (HQ) - de Hergé.


É esta a primeira história, que eu li, da famosa criatura saída da imaginação de Hergé, Tintim, sempre a escudá-lo o simpático Milu. Diferente dos igualmente famosos, cativantes, amáveis e divertidos Calvin e Haroldo, que vivem em pé de guerra, Tintim e Milu são amicíssimos tais quais Castor e Pólux.

É a história de 1.929, publicada em tiras, no suplemento infantil do Vingtième Siècle, e reunido em livro. Reflete o tom político então vigente, a União Soviética, após a Revolução Comunista de 1.917, a ludibriar com a sua bem-sucedida propaganda, sedutora, à qual o quadrinho que empresta seu nome à esta resenha dedica algumas cenas, o mundo, que se deixa engabelar, por ingenuidade, por comodismo, ou por cumplicidade, voluntária, ou involuntária. Corajoso foi Hergé, que, não se intimidando diante da boa imagem que o governo soviético da União Soviética aos povos do mundo vendia do regime bolchevique, ousou dar à luz, e num suplemento infantil de um famoso jornal, uma obra que, unindo humor à crítica política, simultaneamente simples e complexa, aparentemente despretensiosa, inocente, de aventuras do início ao fim, o protagonista e seu eterno coadjuvante, seu braço-direito de quatro patas, a empreenderem façanhas dignas dos heróis e dos super-heróis, denuncia os crimes dos comunistas.

À Rússia o Petit Vingième envia Tintim. Embarcam num comboio Tintim e Milu. E tão logo nele embarcam, são alvos de um atentado à bomba, que pulveriza, diremos, usando uma hipérbole, o comboio, enquanto o herói, que se revela, no decorrer de seu périplo homérico, dotado de poderes dignos dos semideuses olímpicos, e seu cachorrinho de estimação saem ilesos da trágica aventura, que resultou no desaparecimento (eufemismo para "morte") de 218 pessoas. E chegam a Berlim. E é Tintim acusado de explodir o comboio. Ele defende-se: alega inocência. Em vão. É preso. Seu inseparável cãozinho sempre ao seu lado. Escapam da prisão o herói e seu anjo da guarda, que o livra de apuros em incontáveis ocasiões. E participam de uma perseguição, soviéticos no encalço deles. Faz-se Tintim de morto. E num carro da polícia, em fuga, de um avião jogam-lhe bomba, que lhe destrói a metade traseira do carro. E colide com a locomotiva de um trem. É estraçalhado o carro. E a tragédia não se consuma: apesar da violência do acidente, Tintim e Milu da adversidade retiram-se incólumes, o cão coberto por espessa camada de carvão em pó, que o apretejara. E um agente da Tcheka atenta contra a vida do herói, pondo-lhe à frente uma casca de banana, para que ele inadvertidamente a pisasse, escorregasse, vindo a morrer, acidentalmente, assim que, sob a irresistível força da gravidade, atingisse o chão. Debalde a diabólica artimanha do crudelíssimo agente soviético, que em outras ocasiões atenta contra a vida do heróico belga.

Depois de conduzir, sobre os trilhos da via férrea, um carro mecânico, e, na sequência, dentre outros episódios, reconstituí-lo, aperfeiçoando-o, com peças que encontrara em um ferro-velho, e fingir-se de morto, e lutar contra um soviéte e dar-lhe uma sova, e vestir-se de fantasma, para assustar os bolcheviques que lhe haviam invadido o quarto em que se hospedara, e cair no esgoto, constipar-se, e com um espirro arrancar da parede a grade que o prendia naquele território fétido, e ser preso, e pilotar um barco, a persegui-lo inimigos, que lhe afundam a embarcação, e ser preso, e lutar contra torturadores chineses, fugir da prisão, e ir a Moscou, e alistar-se numa expedição às gulags, e ser condenado à morte por fuzilmento, e fingir-se de morto, e ser soterrado por neve, e ser atacado por um urso, contra o qual se envolve numa luta corpo-a-corpo, e ser capturado pelos soviéticos, e chegar ao esconderijo onde havia tesouros roubados ao povo russo por Lenine, Trotski e Estaline, e pilotar um avião, e ter o avião atingido por um raio, e ser aclamado vencedor da primeira etapa do Raid Pólo Sul - Pólo Norte, e em comemoração festiva embriagar-se, brigar com alemães, ser preso, e prender um bolchevique que pretendia explodir capitais européias, e ganhar uma recompensa de 20.000 Marcos, regressa, enfim, à sua terra, Bruxelas, o ponto de partida da sua extraordinária e fabulosa odisséia.

Cá entre nós: em poucas horas, Tintim, o amado Tintim, e o seu companheiro de todas as horas, Milu, realizam façanhas que superam as de Hércules, as de Aladin, as de Robinson Crusoé, as de Gulliver. Bater-se com um urso que se embriagara com uma boa dose de vodka e derrotá-lo não é para qualquer um; forçar um homem, que lhe corria no encalço, a encher o pneu do carro acidentado como ele o fez ninguém jamais conseguiu; cortar, em escasso tempo, uma árvore gigantesca, e dela tirar, esculpindo-a com um canivete, uma hélice para que pudesse, acoplando-a ao avião, abatido, mas ainda com a potência de alçar vôo e percorrer longas distâncias, apenas ele foi capaz. E o que podemos falar de Milu, seu eterno, leal e corajoso amigo?! Ora, ele o salvou nos momentos mais perigosos, mais sensíveis. Até fantasiar-se de tigre, fantasiou-se, para salvar Tintim. E enfrentou um tigre; e afugentou-o, reduzindo-o, ao latir, a um gatinho inofensivo. E não se acanhou quando o converteram em alvo de gargalhadas bodes, patos, vacas e outras criaturas de quatro e de duas patas.

Há nas pouco mais de cem páginas desta obra quase centenária, centenária e jovial e espirituosa, cenas hilárias e de puro e salutar nonsense. Os disparates são divertidíssimos. O périplo do herói belga e de seu amável cãozinho não é tão disparatado quanto as aventuras do Barão de Munchäusen, mas é igualmente divertido. É Tintim um portento de força, dir-se-ia a versão maculina de Píppi Meia-longa. Até moer de pancadas um urso, moeu. E Milu é um observados perspicaz do comportamento de Tintim e do de outros personagens, sempre atento, e desconfiado, a ler nas pessoas as intenções delas, e antecipando-às ações dos inimigos de Tintim, prejudicá-los, favorecendo-o, protegendo-o, sempre que possível, nem sempre evitando que ele se ponha em apuros.

A ingenuidade do tom da aventura de Tintim é aparente, contrasta com o teor político, diluído no mar de humor e aventura. Hergé, com sensibilidade cativante, e surpreendente, com discrição, comedimento, e crueza, denuncia os crimes do governo soviético em algumas cenas: o cenário, montado para vender ao Ocidente imagem favorável do regime comunista; as eleições, numa votação coletiva, os cidadãos, sob a mira de armas-de-fogo, obrigados a votar nos candidatos que o Partido indica; a distribuição de alimentos, ração diária que mal e mal dá para a subsistência, alimentos que até os porcos rejeitam, e que apenas os cidadãos que declaram juras de amor à ideologia comunista recebem.

É esta aventura de Tintim um passatempo, e uma obra política. A ficção não eclipsa a realidade, que é apresentada, embora com crueza, com traços atenuados num panorama cômico, disparatado, animado com personagens hiperbólicos, os episódios a se desenrolarem numa sequência estonteantemente divertida. Não tem a obra de Hergé o tom fatalista, pessimista, derrotista, apocalíptico, comum a inúmeros autores realistas. Não é obra de um homem desesperançado diante do horror que o mundo, indiferente a ele, lhe mostra.

É do Tintim esta a primeira história que li. E não será a última.


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Lucky Luke - O Juiz (HQ) - de Morris


Os rapsodos, a inspirá-los as musas helênicas, cantaram as origens dos deuses, e as suas peripécias, façanhas, trabalhos,batalhas, guerras, e as dos semideuses e as dos heróis. Os trovadores lusitanos, a inspirá-los as musas ibéricas, cantaram as conquistas dos reis, e os seus amores, os seus maldizeres, os seus escárnios. Na ilha da Britânia, os bardos cantaram aventuras, hoje lendárias, do Rei Arthur e dos seus nobres Cavaleiros da Távola Redonda, e os menestréis as de rebeldes e outros personagens hoje queridos de todos. Em terras do outro lado do Atlântico, em uma era mais próxima de nós, num tempo em que a civilização transitava para uma era, ainda embrionária, industrial, que iria matar, nos anos que se lhe seguiriam, nos homens a poesia e a bravura, os poetas cantaram as façanhas dos heróis das terras novas, Buffalo Bill, Davy Crockett, Daniel Boone, Wild Bill Hicock, heróis lendários do panteão dos povos que marcharam para o oeste. Negligenciaram, todavia, a biografia de Lucky Luke e a de seu antagonista, Roy Bean, personagens que se envolveram em embates homéricos, embates que os cantou o talentoso Morris, a inspirarem-lo, tardiamente, após a morte dos lendários mitos americanos, as musas do Novo Mundo, que o presentearam com o talento dos rapsodos, dos trovadores, dos bardos e dos menestréis, e dos Leonardos e dos Michelângelos, talentos que, unidos em um só homem, permitiu que ele, agraciado com eles, a empunhar a pena, pusesse em papel os capítulos da história fabulosa que homens extraordinários cantaram, ao oeste do Rio Pecos, na cidade de Langtry, recanto aprazível, onde, ao contrário do que diz a história, há lei, a lei do juiz Roy Bean, que exerceu, num saloon-tribunal, com mãos-de-ferro, e errático, e reprovável, senso de justiça, a justiça. E nas mãos de tal juiz o destino jogou o esbelto e gracioso herói americano, Lucky Luke, o homem que dispara mais rápido que a sua sombra.

No canto que abre o épico, vemos o heróico Lucky Luke a ser incumbido, pelo mr. Smith, de conduzir, de Austin, Texas, até Silvercity, Novo México, a secundá-lo o chiquérrimo matuto La Chique, que lhe conta a história do juiz Roy Bean, manada de gado que trazia no lombo a marca do Rancho da Barra Dupla. Mal sabia o previdente herói que a viagem ele não a empreenderia sem contratempos, que o iriam pôr na frente da mira de rifles, nas garras de um urso e no banco dos réus.

Não nos antecipemos aos fatos. Estamos, ainda, a falar do princípio da fantástica aventura de um dos maiores heróis do Velho Oeste.

Assim que atravessa, a conduzir o gado do Rancho da Barra Dupla, a ponte sobre o Rio Pecos, Lucky Luke depara-se com uma estaca - a encimá-la um abutre robusto, agourento, que, a viver naquelas terras sáfaras, jamais conheceu a fome - fincada no solo árido, e lê os dízeres inscritos nas duas placas nela pregadas: na superior, maior: "Estrangeiro, chegaste a Langtry. População, hoje", e, na menor, inferior: "Quarta-feira, 12 - 225 habitantes." Estão Lucky Luke e La Chique a cinco quilômetros da área urbana. E de tal distância, o juiz Roy Bean, dono de um faro sobrenatural, sente o odor que exalam os corpos dos bois e das vacas, e vai ter uma palestra com Lucky Luke, palestra cujo prólogo é um disparo com um rifle, que desperta, de imediato, o adormecido herói americano. É tão rápida, e fulminante, e infalível, o senso de justiça do afamado juiz, que ele, dispensando o forasteiro de falar qualquer palavra em sua defesa, assim abreviando o julgamento, acusa-o de haver roubado o gado, e o sentencia a ser, acorretado a uma árvore, perseguido por um urso, o terrível urso Joe, animal ferino, de caninos grandes e pontudos, de corpanzil monstruosamente respeitável, petrificante, e de uma ferocidade ímpar, também ele acorrentado à árvore. Durante este evento, digno de ser registrado pelo brilhante artista que é Morris, os cidadãos que apostam na captura de Lucky Luke pelo urso são condenados, pelo juiz Roy Bean, que, sempre de olhos abertos, e alerta às injustiças e aos crimes que ocorrem em Langtry, confisca-lhes, subserviente ao Código Civil, o dinheiro das apostas.

E agenda-se o processo cujo réu é Lucky Luke - e ao tribunal acorrem multidões, de todos os cantos, para assistirem ao imperdível espetáculo. Entram em cena outros personagens, sem os quais o poema não teria as suas riqueza narrativa e fidelidade aos fatos: o mexicano Jacinto; o juiz Bad Ticket; o banqueiro J. P. Hogan; o professor Mr. Williams; o agente funerário a quem chamam Gato-Pingado; e, outros, que, de menor expressão, são imprescindíveis para a narração fiel aos fatos que se lê nos hexâmetros datílicos dos cantos da extraordinária aventura que os contemporâneos de Lucky Luke que viveram a oeste do Rio Pecos assistiram e que o grandioso Morris, após centúrias a se debruçar sobre documentos e livros históricos obscuros, registrou, desinteressadamente, em livro monumental.

Não podemos sonegar ao atilado, exigente, leitor, algumas notícias acerca da aventura do nosso herói Lucky Luke, aventura repleta de reviravoltas singulares e curiosidades antropológicas.

Lucky Luke escapa, rifle em punho, do saloon-tribunal. E ao saloon-tribunal regressa, e rende o juiz, pondo-o à mira de um revólver. Atingido, na cabeça, pelo Código Civil, instrumento pesadíssimo que o juiz Roy Bean arremessara-lhe, perde os sentidos, e, desacordado, cai. É preso. Com ajuda do inestimável Jacinto, foge. E recorre ao juiz Bad Ticket, e ajuda-o a construir, diante do saloon-tribunal do juiz Roy Bean, um tribunal. Fica entre o fogo cruzado entre os juízes Roy Bean e Bad Ticket. Para dirimir as pendências, propõe um duelo entre os dois juízes: é o duelo um jogo de poker, num ringue armado sobre o rio: compromete-se o perdedor a ir-se embora, e para sempre, de Langtry. Bad Ticket, o novo juiz de Langtry, condena Lucky Luke à morte por enforcamento. O urso Joe salva Lucky Luke, que se alia ao juiz deposto Roy Bean. O juiz Bad Ticket prende Lucky Luke e Roy Bean num alçapão. Lucky Luke e Roy Bean são dados mortos por afogamento. Fazem-se de fantasma. Enfim, após estas e inúmeras outras façanhas, o nosso heróico Lucky Luke, valente pistoleiro do Velho Oeste, agraciado, pela natureza, com bravura indômita, chega ao fim de seu périplo pela cidade, cujos habitantes vivem, agora, sob a guarda de um juiz justo e correto. Está Lucky Luke satisfeito com o epílogo da sua heróica aventura, um épico dos tempos modernos.

Leu o leitor, e atentamente, e interessadamente, sabemos, todas as palavras, que estão razoavelmente dispostas, e em boa quantidade, no parágrafo que antecede a este, um resumo, diremos, das peripécias, das adversidades, das reviravoltas que o mundo ofereceu ao nosso apolíneo herói, que soube, no uso de sua destreza no manejo do revólver e do rifle e das lucubrações intelectuais, punir os homens injustos em benefício dos homens injustiçados.

É a aventura O Juiz, narrada e ilustrada pelo preferido das musas americanas, de Lucky Luke, um episódio, e dos mais emblemáticos, da biografia de tão louvável herói, homem de inegáveis coragem e destemor, homem que jamais recua diante do perigo, homem abnegado, defensor da justiça e da liberdade, disposto a, sempre que as circunstâncias lhe exigiram-lhe, aliar-se a um de seus inimigos contra outro deles, conservando, fria, e pensativa, a cabeça, tal qual um aluno de Zenão, a cerebrar suas sofisticadas e sutis artimanhas, revelando ao mundo possuir o sangue do criador do Cavalo de Tróia.

É "O Juiz", do maravilhoso Morris, um monumento literário universal, uma homenagem ao homem americano. E é o herói o esbelto e apolíneo Lucky Luke, por antononásia O Homem Que Dispara Mais Rápido Que A Sua Sombra, um emblema do Velho Oeste.

Tem Lucky Luke seu perfil na galeira dos heróis, e está, à mesa, tal qual Sócrates, após beber da cicuta que lhe ofereceram, com seus iguais, numa palestra animada, a ter um descontraído dedo-de-prosa com os seus pares Robin Hood, Robinson Crusoé, Ben-Hur, e tantas outras lendas que os literatos imortalizaram.


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Malba Tahan, e os números, e a geometria, e Fermat, e Türing, e o hiperespaço. Cinco livros: Os Números, de Georges Ifrah; O Homem Que Sabia Demais, de David Leavitt; O Último Teorema de Fermat, de Simon Singh; A Janela de Euclides, de Leonardo Mlodinov; e, O Homem Que Calculava, de Malba Tahan.


Decidi reunir os cinco livros mencionados no título numa só resenha, e comentá-los, em poucas palavras. De todos, o de Malba Tahan é o único que li há uns vinte anos; e aos outros dediquei leitura recentemente, sendo que ao de George Ifrah há um ano, e ao de David Leavitt, ao de Simon Singh e ao de Leonard Mlodinov há poucos dias - e os destes três o primeiro que li foi o de Mlodinov, e o último o de Leavitt.

Começo recordando O Homem Que Calculava, livro de Matemática, que o autor, narrando histórias fabulosas, ensina com espirituosidade. É o livro agradável e divertido. A Matemática não é uma, direi, ciência insossa, desgraciosa, depressiva, emasculadora; tem os seus atrativos, que os matemáticos sabem apreciar - que o diga Andrew Wiles, o herói do livro de Simon Singh, que no seu, ouso dizer, romance O Último Teorema de Fermat, narra a aventura, impressionante, fabulosa, da concepção do enigma que Fermat apresentou ao mundo, até a solução dele, encontrada, por Andrew Wiles, mais de trezentos anos depois, sem sonegar aos leitores contos e curiosidades da era pitagórica, a gênese da extraordinária aventura, Pitágoras a inspirar a Fermat a idéia que iria atormentar, no decorrer dos três séculos que sucederam, os maiores matemáticos da História, dentre eles Leonhard Euler.

Para falar, e com propriedade, do Teorema de Fermat e dos trabalhos hercúleos que os matemáticos empreenderam para encontrar-lhe a solução, Simon Singh narra façanhas de Pitágoras e dos de seu círculo matemático, místico, esotérico, e algumas curiosidades, e outras histórias, reais, que estão no campo das lendas, do fabulário popular. Fala o autor do amor de Pitágoras pelos números perfeitos, e da relação umbilical deles com a natureza, e da harmonia da Matemática com a Música, e de Hipaso, cujo fim trágico é uma nódoa na biografia de Pitágoras, e da Biblioteca de Alexandria, cuja ereção é de inspiração de Demétrio Falero; e de Euclides, e sua obra maior, Os Elementos. E fala da história da descoberta dos números irracionais, e dos números primos, e dos números amistosos, e dos números sociáveis, e dos números negativos, e do número zero, e dos números imaginários, de todas as fantasmagorias matemáticas a maior.

É imenso o panteão dos heróis do universo da Matemática.

O autor de O Último Teorema de Fermat dedica páginas e mais páginas para falar de Diofante de Alexandria, Brahmagupta, Euler, Rafaello Bombelli, David Hilbert, Theano, Hipácia, Emmy Noether, Paul Wolfskehl, Henry Dudeney (mestre dos enigmas), Charles Dodgson (Lewis Carroll, o autor de Alice No País das Maravilhas), Sam Lloyd (charadista, criador do Enigma 14-15), Kurt Gödel, Epimenides, Heisenberg, Alan Turing, Goro Shimura, Yutaka Taniyama, e uma infinidade de outros nomes, todos eles de valor inestimável. Destaco, aproveito a ocasião, o nome de Kurt Gödel e o de Epimenides, este, autor do Paradoxo de Creta, ou do Mentiroso, aquele, que veio a provar, com seu Teorema da Indecidibilidade que não é a Matemática tão matematicamente correta como os leigos acreditam. Neste livro, de divulgação científica, uma biografia, não de Pierre de Fermat, nem de Andrew Wiles, nem de Pitágoras, mas do teorema que dá título ao livro, o leitor vem a ler fórmulas de feitiçaria, cujos ingredientes cabalísticos são trio pitagórico, teoria dos números, teoria da probabilidade, "reductio ad absurdum", espaço hiperbólico, teoria dos jogos, equações elípticas, formas modulares, geometria diferencial, e outros de igual quilate. Há um quê de místico, alquímico, sagrado, na Matemática. Pitágoras já o sabia; e conhecendo-lhe o valor não admitia, na Irmandade Pitagórica, hereges e apóstatas, e estes eles os condenava à morte se transgredissem seus rituais, suas regras.

De brinde, os leitores ganham a notícia da singularidade do número 26.

Epimenides e Kurt Gödel também estão presentes no livro de David Leavitt, O Homem Que Sabia Demais - Alan Turing e a Invenção do Computador, livro que narra a vida do pai da máquina universal, filha da máquina analítica de Charles Babbage. É o livro interessante. Dá notícia da vida sexual de Alan Turing, que era homossexual, do tratamento desonroso que o governo inglês lhe dedicou; e de sua empresa no grupo de matemáticos que trabalharam, com afinco, e energia inesgotável, para sobrepujar a Enigma, a máquina esfíngica nazista de criptografia. O trabalho de Alan Turing, inspirador. Não resume o autor à vida de Alan Turing; trata ele, em detalhes, além do trabalho de Leibniz, Frege, Bertrand Russell, Hilbert, Hardy, Roger Penrose, M. H. A. Newman, John von Neumann, Bernhard Riemann, e dos acima citados Babbage, Epimenides e Gödel, de Wittgenstein, com quem Turing manteve um entrevero emocionante acerca de uma ponte, de Dilwyn Knox, que também esforçou-se para decifrar Enigma, e de Marian Rejewski, cuja inteligência ajudou o herói do livro de Leavitt a sobrepujar a esfíngica inteligência maquinal nazista. O trecho que trata o livro dos mecanismos da Enigma, e da máquina-a e da máquina ace, ambas de Turing, é um terreno deveras árido, e o leitor tem de percorrê-lo com atenção e esforço redobrados - dir-se-ia um labirinto em cujo coração há um minotauro, um dos inúmeros monstros mitológicos que o leitor tem de enfrentar durante a leitura, monstro que pode o leitor derrotar se, e apenas se, contar com a ajuda inestimável da Tia Nastácia.

Praticou Turing a Matemática num caso concreto, para efeito prático, e urgente: a encriptação de uma quimera, a enigmática máquina nazista de guerra, que petrificava todos os que a fitavam, e transtornos insuperáveis causava aos Aliados.

Admirador do desenho animado Branca de Neve e os Sete Anões, dos estúdios Disney, Alan Turing, no desenho inspirando-se, decidiu deixar o mundo, viajar para outro meio existencial: comeu de uma suculenta maçã banhada em uma poção de cianeto.

E o onipresente Pitágoras está no livro de Leonard Mlodinov, A Janela de Euclides - Das Linhas Paralelas ao Hiperespaço. Além dele, outro grego, seu conterrâneo, ocupa dezenas de páginas do livro, Euclides, autor de Os Elementos.

Neste livro, o princípio do romance histórico que conta a aventura da Geometria, cuja gênese está no trabalho de Euclides, sua geometria, que lhe ganhou o nome adjetivado, a euclidiana. E da simplicidade de espaço bidimensional da obra máxima do matemático e filósofo grego, os humanos chegaram à complexidade dos conceitos matemáticos que presenteiam o homo sapiens com uma tal de brana, cuja estrutura consiste numa teratológica e escalafobética alimária de onze dimensões, inimaginável, inconcebível pela imaginação humana. Estão registrados, na heróica façanha, que o livro narra, os nomes de Gauss, Descartes, Riemann, Lobachevsky, Einstein, Feynman, John Schwarz, Schrödingen, Heisenberg, Theodor Kaluza e Oskar Klein, Murray Gell-Mann, Gabrieli Veneziano, John Wheeler, e não sei quantos outros da plêiade. Não se surpreenderão os fãs de Jornada nas Estrelas com os no livro apresentados espaço hiperbólico, geometria não-euclidiana, espaço-tempo, bóson, férmion, espaço tetradimensional não-euclidiano da relatividade geral, teoria das cordas, teoria M, teoria quântica, tipologia, entropia, mecânica ondulatória, mecânica matricial, cilindro de Kaluza-Klein, quarks, espaço Calabi-Yau, e outros personagens dos quais são íntimos, e não se assustarão com a afirmação de que o tempo e o espaço não existem, não em um sentido, direi, sutil, mágico. E persistirá a dúvida: O universo tem quantas dimensões: quatro, seis, dez, ou onze? Faz-nos pensar o teor do livro, e nos perguntar se é a sua substância saída da cabeça de cientistas, se da de escritores de ficção científica.

Nenhum progresso científico haveria, e Malba Tahan, David Leavitt, Simon Singh e Leonard Mlodinov jamais escreveriam seus livros se os nossos ancestrais, desde os mais antigos deles, não houvessem pensado numa das maiores de todas as invenções humanas: os números. E são os números os protagonistas de Os Números, livro de Georges Ifrah, obra que concede aos leitores o prazer de conhecer a prodigiosa inteligência humana ao dela, fazendo uso, inventar coisas, os números, hoje nossas íntimas - mas não íntimas de todos os homens -, de nós tão familiares, de nós tão amigas, e para nós tão úteis, tão valiosas. E a invenção de tal preciosidade contou com gerações de humanos, que, não se entendendo, em tempos longínquos, que os livros de História mal registram, usavam, indecisos, inseguros, a base dez, a base doze, a base sessenta, sem saber se, para contar a quantidade das coisas, empregavam os dedos, e unicamente os das mãos, ou se, além dos das mãos, os dos pés, e o nariz, e a boca, e os olhos, e as orelhas, enfim, todas as partes do corpo humano, todos os seus aparatos. Era, antes da invenção dos números, um trabalho exaustivo o de contar as coisas, desgastante e enervante. É a história dos números tão emocionante quanto à dos Argonautas. Ah! Sim. Esquecia-me: Neste livro, Pitágoras tem o seu papel, o de figurante.

E aqui estão os cinco livros que decidi comentar nesta resenha; cinco ótimas obras de divulgação de conhecimentos, todos a animarem o espírito dos homens. 

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