quarta-feira, 22 de junho de 2022

Um conto e uma crônica

 A Morte do Tiziu - mensagem do Barnabé Varejeira


Bão dia, meu querido amigo, amigo do peito, Cérjim, que tá no meu coração. Com a graça de Deus, Cérjim, hoje eu tô digitano, cos meus dedo, no meu celulá, esta mensage po cê, e estou muinto animado, muinto feliz, feliz pruque tô vivo, pruque minha óra ainda não chegô. Tô vivo, e a mia muié tamém, e tamém os meu fio, pruquê Deus ansim quis, e ansim quer. É d'Ele a vontade de me dexá vivo até agora. Que Deus seja lovado. Quando Ele achá que tá na óra de eu í desta pa onde Ele achá que devo í, vô. Que escoia eu tenho?! Manda quem pode; obedece quem tem juízo. E quem pode é Deus. Então, pa mim, resta-me o juízo.

Já faz um bom tempo, né, Cérjim, que nós não se fala pelo Uatesape. Um bom tempo. Eu mando um bão dia po cê, com desenhinho animado, e tamém mando ba noite, e ocê devórde bão dia e ba noite cos desenhinhos animado, figurinhas alegre, e só. Mas hoje eu tirei um tempo da mia vida atarefada pa contá po cê uma instória divertida, divertida pa dedéu, que aconteceu hoje cedo, mas que não começô o seu começo hoje; o começo da instória começô ônte à noite; e a instória terminô hoje cedo, cedinho. Foi um acontecimento muinto engraçado. Engraçado pa dedéu. Ocê nem imagina o que aconteceu. Nem imagina. Foi por demais engraçado. Não me guento de tanto ri. Não me guento. E tenho obrigação de contá po cê o que aconteceu de tão engraçado. Ocê tem de sabê o que foi. Não me guento de tanto ri, Cérjim. Não me guento. Não me guento. Os meu sorriso vão de uma oreia à ôtra, e vórta da pa qual foi pa da qual saiu. Vão e vórta de uma oreia pa ôtra, sem pará. Foi engraçado demais, Cérjim, muinto engraçado, o que se deu hoje cedo. Muinto engraçado. Ocê tinha de vê. Foi muinto engraçado. Meu Deus do Céu! Cada uma que acontece, aqui, que ocê nem querdita. Ri tanto, tanto, mas tanto, que os botão da mia camisa arrebentáro, e a fivela da cinta estorô. E eu soei três litro de suor, de tanto que ri. Fiquei encharcado. Jesus Cristo Nosso Siôr, Fio de Deus! É cada uma, Cérjim, que só Deus veno! É cada coisa que acontece. Não consigo digitá direito as palavra da instória. Se ocê vê os meu erro de prutuguês, com letra fora do lugar, uma letra engolino ôtra, desconsidere os erro, e me perdõe. Não consigo segurá o celulá, de tanto estô rino. Parece, inté, que aconteceu ônte o que tenho pá contá po cê, mas num aconteceu ônte, não; aconteceu hoje, hoje cedo, um pôco depois de o Garrincha cantá o nascer do sór. E canta que é uma beleza, o meu garnizé, que já tá véinho, coitado. Mas ainda canta, e canta tal qual um tenor intaliano, daqueles gordo, cheio de ar nos purmão. É cada uma que acontece, que a gente contano, todo mundo pensa que é mentira. E eu tô só embruiano a instória. E não tô contano ela po cê. Vâmo deixá de enrolação, de lerolero, e vâmo pa instória que nos interessa, instória muinto engraçada. É engraçada pa dedéu, ocê vai vê.

O seu António, o nosso Tóninho, óme bom e trabaiadô, casado ca dona Lulu, muié trabaiadêra que só veno, tem quatro fio, dois óme e duas muié. Um dos óme é o Fernando, o Nandinho, bicho branco inguar arroz descascado; a gente, só de pirraça, chama ele de Tiziu; e o ôtro fio do Tóninho e da dona Lulu é o Lúcio, óme tão pequeno, menor que pé-de-arface, que parece um canarinho, e tem cabelo espetado; e chamamo ele de Urubu; ele é branco, o coitado, mais branco do que o irmão, e não gosta que a gente chama ele de Urubu, mas a gente, mermo ansim, só pa arrumá encrenca e deixá ele bufano de raiva, com vento nas fuça, chama ele de Urubu.

E agora conmeça a instória de hoje cedo, instória que começô ônte à noite. Quero dizê: a instória já aconteceu, e aconteceu hoje cedo, e parece que foi ônte, e agora coméço a contá-la po cê, po cê conhecê-la. Até agora eu só escrevi a introdução; agora, vâmo à instória intêra.

O Tiziu sumiu. Sim. Ele sumiu. O que não é de espantá ninguém; e todos já estamo habituado com os sumiço dele; não é a primêra vez que ele some, e não será a úrtima. E não sumiu hoje; sumiu ônte à noite. Era onze da noite, o céu ia condecorado de estrela, e tudo ia carmo, na santa paz. E a dona Lulu começô a percurá pelo fio desaparecido, nas redondeza, ino de casa em casa, pedino notícia do dito cujo pa todas as pessoa. E ninguém lhe dava notícia do fio, que tomara chá-de-sumiço, era certo, mais certo do que dois e dois ser quatro, e uma dúzia ser doze. E onde tava o Nandinho, o nosso Tiziu? Ele, Cérjim, é óme feito, mas não regula bem da cabeça, não tem cabeça boa, não. Diz o ditado que quano a cabeça não pensa, o corpo padece. Quem foi o primêro óme que ditô o ditado, e pa quem o ditô, não sei. Sei que o ditado se encaixa, à perfeição, no Tiziu. Parece, inté, que foi inscrito pa ele. Enquanto a dona Lulu percurava o fio sumido, o seu Tóninho bebia cerveja, co Grilo e co Gafanhoto, irmãos gêmeo que se parecem um co ôtro e são unha e carne, e a corda e a caçamba, e comigo e co Ruivo, no bar do Zé Carrapato, e não tava nem aí ca órde do dia. Tava sossegado o seu Tóninho. Mas o sossego dele acabô ansim que a dona Lulu entrô no bar, toda esbaforida, suano em bicas, de óios arregalado inguar trasêro de vagalume, o coração dano pinotes, e falô, com voz esganiçada, po marido dela, que ela desposô, na santa igreja, diante do padre:"Tónho, o nosso fio sumiu." E o seu Tóninho arrespondeu-lhe, carmo: "Não se percurpe, muié. Logo o Nandinho aparece." E nem percisô a dona Lulu falá que quem sumira fôra o Tiziu pa o seu Tóninho sabê de quem se tratava. É só o Tiziu que some. O Urubu, embora não bata muinto bem dos pinos,tem juízo. Ansim parece. E o seu Tóninho, a tranquilidade em pessoa, bebeu de um pôco de cerveja, enquanto a dona Lulu, de óios arregalado, cas mão no peito, percurpava-se com o fio desaparecido. Enfim, todos fômo cada um pa sua casa. E o Zé Carrapato fechô as porta do bar. Já era bem tarde. Passava das meia-noite. A dona Lulu varô a noite em claro, percurpada com o fio desaparecido, que não aparecia de jeito nenhum, não dava sinal de sua beleza po mundo. E o seu Tóninho drumiu inguar pedra, pois sabia que o Tiziu ia aparecê mais cedo ô mais tarde; sempre que some,o Tiziu quase sempre aparece mais tarde. E desta vez não foi diferente. Ô foi? O Garrincha cantô. E cantô bonito. Parecia, inté, que havia marcado um gol. E nós, eu, mia muié, os gêmeos Grilo e Gafanho, e a dona Maria dos Doce, e a dona Quitéria, e o seu Janjão, e o Zé da Botica, e a dona Natinha, e a Vó Preta, e inté o Zé Carrapato,fomo pa casa do seu Tóninho e da dona Lulu sabê notícia do desaparecido Tiziu. Tava todo mundo percurpado; mais percurpado ca saúde da dona Lulu do que co Tiziu, que, todos sabia, ia aparecê, mais cedo ô mais tarde. E era umas nove óra aparece na casa do seu Tóninho e da dona Lulu o Tião do Cemitério, que é segurança, que não segura nada. E pode ele segurá arguma coisa com aquela pança de muié prenha!? Não pode. É imporssíve. E o Tião, cos passo medido, ca cara vexada, tímido, falô pa dona Lulu e po seu Tóninho estas palavra: "Seu Tónho, dona Lulu, eu tenho uma coisa pa contá po ceis dois, mas tô um pôco vexado de contá. É uma instória triste, tão triste que me dói o coração. O fio do ceis, o Fernando, tá lá no cemitério." Foi um deus-nos-acuda, Cérjim. A dona Lulu desmaiô nos braço do seu Tóninho. E corre um daqui, pa pegá cadêra, e corre ôtro dali, pa pegá água pa dona Lulu; e um acóde ela; e ôtro presigna-se e pede a Deus a sarvação da arma do Tiziu. Todos ficamo tonto ca notiça. A dona Lulu acorda do desmaio, bebe de um pôco de água do copo que arguém, não me alembro quem, lhe ofereceu, e, o coração parado, preguntô po Tião do Cemitério: "De que ele morreu, Tião?", e o Tião, apalermado, respondeu-lhe: "O Fernando morreu!? Ele não morreu, não, dona Lulu. Eu o encontrei, agorinha cedo, deitado, perto do túmulo do Prefeito, vivinho-da-silva. Ninguém encomendô a arma dele, não, dona Lulu. Ele tá dormino, lá,perto do túmulo do Prefeito, e fedeno cachaça." E todos gargaiamos, de alívio. Tá vivo o Tiziu, aquele manguaça. Que susto ele deu em nós, se nem magina, Cérjim.

É esta é a instória que eu queria contá po ce. E contei. É triste, e divertida tamém.

Mande mensage pa mim, Cérjim. Dê notícia daí da cidade. Ansim que eu tivé ôtra instória pa te contá, conto. Fique co Deus Nosso Senhor Menino Jesus, fio de José e da Santa Maria. E tenha um bão dia. Té breve.


*


A Difícil Arte de Arrumar no Prato o Arroz e o Feijão.


- Bom dia.

- Bom dia.

- O senhor pode nos conceder um minuto do seu tempo para nos responder uma pergunta a respeito dos seus hábitos alimentares?

- Sim.

- O senhor já almoçou, hoje?

- Já.

- O que o senhor comeu?

- Tomate, ervilha, ovo frito, cebola, e um bife, e arroz e feijão.

- O senhor comeu arroz e feijão?

- Sim.

- O senhor pôs o arroz em baixo, ou em cima, do feijão?

- Em cima.

- O senhor conhece os estudos sociológicos e antropológicos a respeito da disposição do arroz e do feijão no prato?

- Não.

- O senhor sabe qual é o simbolismo que a disposição, no prato, do arroz em cima do feijão representa?

- Não. Existe um símbolo?

- Sim. Existe, sim, senhor. O senhor sabia que é a mensagem implícita o ódio que o homem branco sente pelas pessoas negras? Sendo o senhor um homem branco...

- Que!? Absurdo! Eu não odeio os negros.

- Odeia, sim.

- Não odeio, não. Tenho muitos amigos negros. E uma das minhas duas cunhadas é negra. E ela é mulher honesta, esposa exemplar de meu irmão, mãe dedicada, amorosa. Mulher respeitável, adorada, e com ela dou-me muito bem.

- O senhor não sabe que odeia os negros, mas os odeia. O sentimento de ódio está implícito no ato de pôr, num prato, o arroz em cima do feijão. Estar em baixo é o mesmo que inferioridade, e estar em cima, superioridade. No subconsciente coletivo de um povo branco patriarcal, de passado escravocrata, todo ato carrega uma carga emocional de preconceito racial, inscrito nos genes do homem branco; sem o saber, deixa-se transparecer tal valor racista nos mais simples gestos. O senhor já se perguntou porque o senhor põe o arroz em cima do feijão?

- Mas o feijão que eu como não é preto; é marrom, carioquinha, e marrom bem claro, quase branco.

- No inconsciente coletivo, o feijão representa a pessoa negra.

- Eu nunca pensei tal pensamento. Que eu saiba, feijão é feijão, seja o carioquinha, que eu como todo dia, seja o preto, que eu como, nos churracos, nos fins-de-semana.

- O senhor nunca pensou no simbolismo da disposição do arroz e do feijão, no prato, o arroz em cima do feijão, porque o senhor herdou de seus ancestrais brancos o preconceito do homem branco pelo homem negro.

- Para mim, feijão é feijão, e arroz arroz. Não há homem branco e homem negro em tal história; há apenas arroz e feijão.

- Realizamos interessantes estudos de comportamento a respeito dos hábitos das pessoas brancas. O senhor não imagina a carga emocional de ódio ao negro que o senhor carrega no seu subconsciente.

- Eu não odeio os negros.

- Odeia, sim.

- Eu, que me conheço há cinquenta anos, sei que não os odeio, e você, que nunca vi mais gordo, quer me dizer que me conhece melhor do que eu me conheço?!

- Estudei, na faculdade, sociologia,antropologia, e psicologia. Tenho amplos conhecimentos de psicologia social e de sociologia da psicologia, sociologia da história, sociologia genética, antropologia social, e outras disciplinas do campo de humanas. Sei ver além do que as pessoas sem instrução conseguem, e podem, ver: todas as pessoas brancas, já é do conhecimento de todos os estudiosos de humanas, carregam, no mais íntimo de seu ser, o ódio preconceituoso pelos negros. E no ato de pôr o arroz em cima do feijão está implícito tal preconceito racial.

- 'tá bom. Você me convenceu. A partir de amanhã, irei pôr o feijão em cima do arroz.

- O senhor sabe qual mensagem está implícita em tal disposição, o arroz em baixo do feijão? O senhor tem idéia do valor simbólico do arroz em baixo do feijão?

- Sei: a de que eu gosto de comer feijão e arroz.

- Qual é a mensagem implícita na disposição, no prato, do arroz em baixo do feijão?

- Mensagem implícita!? E há mensagem implícita?!

- Há.

- E qual é? Diga-me, sabichão.

- Eu já disse ao senhor que o feijão é o símbolo da pessoa negra; e o arroz, digo, é o da pessoa branca. Ao pôr o feijão em cima do arroz, o homem branco, ao se pôr a comer do almoço, irá, primeiro, comer o feijão, que está em cima do arroz, e, depois, se a fome ainda lhe alimentar espírito, irá comer o arroz, que está em baixo do feijão. O senhor não percebeu o símbolo racial que tal disposição do arroz e do feijão representa. Fosse o senhor um homem instruído, o detectaria, no ato. Veja: se está o feijão, que representa a raça negra, em cima do arroz, que representa a raça branca, então, a pessoa, ao pôr-se a comer do que há no prato, leva à boca, primeiro, o feijão, que representa, repito, a raça negra; é, portanto, o corolário: mata-se a gente negra, primeiro; se a fome persistir, mata-se a gente branca; se não, a gente branca salva-se. Mas os negros sempre são sacrificados.

- Que absurdo.

- Absurdo?! O senhor não faz idéia dos significados raciais do simples ato de arrumar, no prato, arroz e feijão. E não fazendo idéia, não pode alcançar seu espírito, de homem branco de uma sociedade de passado escravocrata, e assim jamais empreenderá esforço sincero para apreender a mensagem implícita em todos os seus atos de herdeiro cultural de uma sociedade racista. Ao pôr o arroz em baixo do feijão, está-se, sem o saber, a indiciar que se está disposto a, é o desejo subjacente, sacrificar o povo negro, e talvez avançar contra o povo branco, ato, este, simbolizado no apetite, que talvez não seja tão feroz quanto se pensou que fosse ao preparar o prato; aqui, o homem branco, deixando, no prato, de resto, o arroz, está a comunicar seu desejo de livrar da morte os brancos.

- Eu jamais deixei restos... Não desperdiço comida.

- Não vem ao caso, se o senhor deixa, ou não, restos. O simbolismo do sacrifício dos negros está implícito no ato de pôr o feijão em cima do arroz, independentemente de o homem branco comer, ou não, todo o arroz.

- Tudo bem, amigão, tudo bem. Não irei pôr o feijão em cima do arroz. A partir de amanhã, melhor, a partir de hoje, à noite, se eu jantar, irei pôr o feijão no lado direito do prato, e o arroz no esquerdo.

- O senhor já pensou no simbolismo implícito de tal ato?

- Que simbolismo implícito!?

- É unânime, entre os historiadores, que o nazismo e o fascismo são ideologias políticas situadas à direita do espectro político; portanto, ao se pôr o feijão à direita do arroz, associa-se a raça negra ao fascismo e ao nazismo; sabendo-se que tais ideologias as defendem tipos humanos inescrupulosos, sórdidos, genocidas, associa-se os negros à sordidez, ao genocídio.

- Então, irei pôr o feijão à esquerda do arroz.

- O senhor não está me entendendo.

- Não?!

- Não. Veja bem. Há duas ideologias políticas: a da esquerda e a da direita. A da direita é extremista, intolerante, radical, fascista e nazista, e racista. Persegue, e mata, as pessoas da esquerda, para dizimá-las. A esquerda, que é democrática, é defensora da justiça social. Ao separar o feijão, no prato, à esquerda, e, à direita, o arroz, cria-se um símbolo de segregação racial, isolando-se dos brancos os negros, assim facilitando, pelos brancos, que são racistas, a identificação dos negros, o que favorece a perseguição e a morte destes por aqueles. Está implícita tal mensagem em tal disposição, no prato, do arroz e do feijão. É um símbolo...

- Já entendi, amigo, já entendi. Amanhã, no almoço, eu farei o seguinte: em vez de pôr o feijão à esquerda, ou à direita, e o arroz, à direita, ou à esquerda, irei pôr o feijão na metade do prato mais distante de mim, e o arroz na metade mais próxima.

- Se o senhor entendesse a mensagem implícita em tal símbolo, que está implícito...

- E há símbolo implícito, neste caso, também?!

- Sim. Há. O senhor nunca estudou simbologia da culinária, da cultura da alimentação, e da associação umbilical entre os alimentos e a cultura história dos povos. Infelizmente, muitas pessoas preferem ignorar tal assunto, e zombar de quem se dedica a estudá-lo, do que reconhecerem-se ignorantes. Estudei o assunto racial durante vários anos. E sei o que digo. E entendo as mensagens implícitas nos atos mais comuns dos homens, que ignoram o real, verdadeiro símbolo deles. O senhor não faz idéia de qual é a mensagem implícita em se pôr, no prato, mais distante da pessoa, o feijão do que o arroz.

- E qual é a mensagem implícita? Estou curioso para saber qual é.

- É a mensagem implícita à do desprezo do homem branco pelo homem negro.

- Você está me dizendo que eu desprezo os negros?

- Sim.

- Eu já disse para você, cara, que tenho amigos negros e uma cunhada negra. E eu os amo.

- O senhor pensa que os ama. O senhor quer acreditar que os ama, mas o senhor os odeia.

- Eu os odeio!?

- Sim. O senhor os odeia. O senhor não sabe que os odeia. Mas eu sei que o senhor os odeia. Os meus estudos, em faculdade renomada, garantem-me a certeza da minha asserção. O feijão, no prato, na metade mais distante de quem arrumou o prato, é o símbolo do desejo dos homens brancos manter os homens negros longe, distantes, pois o contato do corpo dos brancos com o corpo dos negros, enoja os homens brancos, que não desejam sequer sentir o odor corporal dos negros. Os homens brancos, com tal disposição do feijão e do arroz no prato, é o símbolo representado, quer manter os homens negros afastados, pois os despreza.

- Então, eu irei pôr o feijão na metade do prato que estiver mais próxima de mim.

- O senhor quer manter os negros à rédea curta, não é mesmo?

- Que!? Ora, eu ponho o feijão mais perto...

- E por que o senhor irá pôr o feijão mais perto do senhor? Não nos esqueçamos: o feijão é o símbolo da raça negra. O feijão mais perto, no prato, de quem no prato o arruma, indica que o homem branco quer que os negros fiquem ao alcance de suas mãos, para mais facilmente capturá-los caso eles queiram fugir; e o arroz, no prato, na metade mais distante, indica o homem branco, que impede a fuga do homem negro, cercando-o.

- Eu nunca pensei em tudo o que você me disse. Se separar, no prato, o arroz e o feijão é ato reprovável, condenável, então, na minha próxima refeição, que se dará, hoje, à noite, no jantar, ou amanhã, no almoço, ao meio-dia, irei misturar o arroz e o feijão. E a partir de então, eu não mais irei separá-los. Ficarão misturados para sempre.

- Na mistura do arroz com o feijão está implícito o desejo de promover a miscigenação.

- E não é bom?! Assim, todos miscigenados,não havendo brancos e negros, não haverá atritos entre negros e brancos, que, juntos e misturados, constituirão uma, e só uma, e apenas uma, raça. E teremos harmonia entre os povos. Não haverá mais guerras raciais.

- O senhor se engana.

- Engano-me!?

- Sim. Engana-se. O senhor foi seduzido pelo discurso do brasileiro gentil que acredita numa idéia falaciosa: a da democracia racial. Tal idéia promove a extinção, dentro de quatro, cinco, seis gerações de miscigenados, da raça negra. Ora, sabe-se que, os da primeira geração de um casal composto por um negro e uma branca, ou por um branco e uma negra, tem pele mais clara do que a do genitor, ou genitora, negro, negra, e se este produto miscigenado da primeira geração conjuga-se com um branco, ou com uma negra, a geração seguinte terá pele ainda mais clara do que a do seu ascendente imediato. Com o passar das gerações, os negros desaparecerão. E é este o símbolo da miscigenação, símbolo que está implícito na mistura, no prato, de arroz e feijão. É a sua mensagem implícita o genocídio da raça negra.

- Parece-me que você entende de símbolos e mensagens implícitas.

- Sim. Entendo. Estudei, eu já disse, e repito, sociologia e antropologia e psicologia. Tenho formação intelectual apropriada para saber o que alimenta o ser dos seres humanos. O senhor prova, ao acreditar que é a miscigenação benéfica à sociedade, que não entende seus desejos e pensamentos.

- Eu não sei o que desejo e penso? A miscigenação...

- O senhor não tem o preparo intelectual para se analisar, para se conhecer, e tampouco avaliar o que está no seu subconsciente.

- Quer saber de uma coisa, amigão?! Eu jamais irei comer arroz com feijão. Irei pôr, no prato, a partir de agora, apenas arroz, e só arroz.

- O senhor, assim agindo, dará uma mensagem: a de que os negros devem ser extintos.

- O quê!? Eu, desejar a extinção dos negros!? Longe disso! Conheço muitas pessoas negras. Por que eu lhes desejaria a morte?

- É o que o símbolo indica.

- Que símbolo!?

- O da presença de arroz, unicamente arroz, no prato. Se o arroz é o símbolo do homem branco, e o feijão do homem negro, então a ausência, no prato, de feijão representa a exclusão social do homem negro, ou, melhor, de sua extinção, pois a única maneira de excluí-lo definitivamente do convívio social se faz dizimando-o.

- Pôxa vida! Está implícita tal mensagem na participação exclusiva do arroz no prato?!

- Sim. Está.

- Então, o meu prato jamais verá um grão de arroz. Agora, só feijão. Só feijão.

- E a mensagem implícita que tal símbolo representa?!

- Quê!? Você 'tá de brincadeira! Há mensagem implícita, neste caso, também?!

- Sim. Há.

- E qual é?

- O desejo do homem branco de manter cativos na senzala os negros. Neste caso, o prato representa o cárcere, e o cárcere dos negros é a senzala. E é o proprietário da casa grande o homem branco. É o símbolo, em tal caso, o desejo do homem branco em ter os negros sob seu domínio; assim, pode o homem branco vergastá-los, no pelourinho, ao seu bel-prazer sádico, desumano.

- Você venceu, amigão. Você venceu. Jogo a toalha. Fui à nocaute, aceito. Admito a derrota. Entendi o recado: o arroz representa a raça branca, e o feijão a negra. Entendi. Não irei incorrer em outro ato preconceituoso e racista ao comer feijão e arroz. Melhor, ao pôr arroz e feijão no meu prato. Jamais. Nunca. E sabe por quê?

- Não. Não sei.

- Você quer saber por quê?

- Sim. Eu gostaria de entender o que o senhor me disse. Se puder me fazer tal gentileza...

- Sim. Posso. Eu não irei, nem hoje, tampouco amanhã, menos ainda em todos os outros dias que me restarem de vida, comer arroz e feijão. Nunca mais. Não comerei arroz com feijão, nem o arroz, e só o arroz, e muito menos o feijão, e só o feijão. Estou mudando os meus hábitos alimentares. Será outra a minha dieta, e nesta não entrarão o arroz e o feijão; nenhum dos dois. Meus pratos jamais verão arroz e feijão. Jamais me prepararei pratos que tenham, no cardápio, arroz e feijão. Jamais. Você está satisfeito?!

- Você conhece a mensagem implícita...

- Que mensagem implícita!? Não irei pôr arroz em cima do feijão, e nem feijão em cima do arroz, e nem o arroz à esquerda do feijão, e nem o arroz à direita do feijão, e nem... Ora, que mensagem implícita, se no meu prato haverá de tudo, até pedra e tijolo, menos arroz e feijão?!

- Se o senhor estivesse intelectualmente preparado para captar as sutilezas simbólicas dos atos corriqueiros do homem branco, detectaria a mensagem racista que se transmite ao não se pôr arroz e feijão no prato. A ausência simultânea, no prato, de arroz e feijão, simboliza uma artimanha, concebida pela raça branca, de simulação de igualdade entre as raças, sendo que, na verdade, indica o desejo de os brancos induzirem os negros a neles acreditarem, e assim os negros, confiando nos brancos, não se praparam para revidar os ataques que os brancos irão lhes desferir.

- Ah! Pelo amor de Deus! Cansei-me desta conversa, que eu deveria ter encerrado antes de iniciá-la. Dê-me licença. Perdi muito tempo ouvindo suas asneiras. E tenha um bom dia.

- O senhor disse que no seu prato não haverá arroz e feijão, mas haverá pedra e tijolo. O senhor sabe qual é a mensagem implícita...

- Sei. Sei, amigão. Sei. A mensagem implícita está no meu subconsciente: irei esmagar sua cabeça com pedradas e tijoladas. Soterrarei você sob uma tonelada de tijolos e pedras, que são, as pedras e os tijolos, símbolos do meu poder. Agora, suma da minha frente. É uma ordem, cuja mensagem explíta é...

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