quarta-feira, 29 de junho de 2022

um

 Afro é afro.


- Meu irmão, ontem eu conheci uma belezura de mulher, que é um afrodisíaco.

- Ela é africana?

- Africana!? Não. Ela é brasileira.

- Brasileira de ascendência africana?

- Não. Ela me disse ser filha de pai espanhol e mãe turca, e neta de, da parte do pai, avô russo e avó grega, e, da parte da mãe, de avô italiano e avó sueca.

- Então, ela não é um afrodisíaco. Seria, se tivesse raízes africanas. Deixe de ser racista. E não empregue, incorretamente, o adjetivo, cujo prefixo 'afro' identifica, exclusivamente, as pessoas de origem africana. A mulher que você conheceu, descendente de europeus, é eurodisíaca. Deixe de ser estúpido. Além de masculinidade tóxica, você sofre de racismo estrutural implícito. Imbecil.


domingo, 26 de junho de 2022

Mensagem do Barnabé

 O casamento do meu filho - mensagem do Barnabé Varejeira.


Bão dia, meu amigo Cérjim. Co a graça de Deus Jesus Cristo Nosso Senhor, bão dia. É,meu amigo, Cérjim, parece que o dia de hoje não tá pa pexe, não. O sol vai, e vórta; e vai, e vórta; e vai, e vórta. Tá indecisa a lâmpa solar. Não sabe o que qué. Se sai da casa, se dorme, se só qué sabê de sombra e água fresca. Eh! sol danado de preguiçoso. Só qué sabê de morcegar. Mermo ansim, com a graça de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, fio de Deus, e fio de José e da Santa Maria, tá bom o dia, tá bom o dia, tá iluminado com um solzinho fraco, e cas nuvem impedino ele de dá o ar de sua graça, e esquentá a cabeça de todo fio-de-Deus. Mas tá bão, bão demais. Tâmo co saúde, e ca famía, que tá bem tamém, cos amigo do peito, que tamém tão bem. O dia vai ansim que Deus qué que vá. É o dia de hoje dia de luz, que reluz, e treluz, de luz inspirituáu, de luz de inspiração. Não tá do agrado de todos. E quano é que tá?! Nunca, uai! Nem Deus agrada grego e troiano. Nem Ele.

Nasceu o dia de hoje, ansim, cansado, dorminhoco, co canto dos galo, e co cocoricó das galinha, que bota ovo, que hão de sustentá o meu corpo, que a terra há de comê e os verme com ele há de se empanturrá, os comilão, e hão de sustentá, tamém, mia muié, querida e amada, que enlacei no casório, a mia paixão eterna, a mia Beatriz, inguar a Beatriz de um poeta da terra do Leonardo. Ô, paixão eterna, que Deus conserva po nosso bem.

Deixêmo de lero-lero, Cérjim, e vâmo ao que interessa, e o que interessa é interesante, muinto interessante.

Não sô poeta - poeta, e dos bão, é o Gonçarve Dias e o Castro Álvarez, e o Bândera. Eu, não. Eu não sô poeta, não. E tem um ôtro poeta, que é bâo tamém, de Minas. E tamém não tenho talento pa fazê discurso sensaborão recheado de palavreado que ninguém entende, palavreado que só serve pa enchê linguiça e sarsicha e torrá a paciência de todos humilde fio de Deus.

Ô, Cérjim, pense bem: toda pessoa tem um sexto sentido, um só, mas eu tenho cinco; é vredade, Cérjim, eu tenho cinco sextos sentido. Parece absurdo, mas não é, não. São cinco os meu sexto sentido: o Zezinho, o Joãozinho, o Luizinho, o Pedrinho e o Joaquim, meus cinco piôio de instimação. São os meu cinco sentido. Sô privilegiado, Cérjim. Quem tem cinco sexto sentido, cinco piôio que alerta pos pobrema que tão pa contece?! Quem? Ninguém. Só eu. O Zezinho, o Luizinho, o Joãozinho, o Pedrinho e o Joaquim sempre me avisa dos perigo iminente, e dos proeminente, e dos tenente. Eles nunca faia. Tão sempre pronto po que dé e vié. Segura o rojão. E cas unha pega todos rabo-de-foguete. São infalível os meu piôio de instimação, que me presenteia a mim mesmo com um sexto sentido multiplicado por cinco. Eles me avisáro, lá no início da geringonça que fizéro os político que tá muinto mar contada a instória do mocorongovírus, que, tudo indica, e nada indica tamém, é um bicho-papão que só atemoriza bobão. Mata gente? Mata. Mas lobisóme tamém mata, e os descrente diz que lobisóme não existe. Ora, Cérjim, ansim que oví que iria os governadô e os prefeito obrigá as pessoa a construí quarenta antena vi que a coisa não era séria. Onde já se viu tal bobage?! Besteira de doutor dipromado. Gente besta dos inferno. Conta cada lorota pa boi dormí que nem o santo querdita. São pior que o Malazarte, os tinhoso. Bando de mentirão. Bando de estrume, gente mardita, que fizéro muinto mar pa muinta gente, contano uma instória da carochinha, sem pé nem cabeça, de assustá todo óme bão, com a tenção de destruí as vida de todos. Bando de fiótes do inferno.

Não quero, Cérjim, falá mais deste assunto, que é de aporrinhá a cabeça. Agora, vô contá po cê uma notícia de motivá o coração da gente, para esparecê o miolo: transondonte meu fio mais véio, o varão, o primêro dos meu herdêro, o Barnabé, me deu-me pa mim uma notícia que me fez me erguer, de tão animado e feliz, po céu: o Barnabé, o varão, ele mermo me contô a instória, ele, que já é óme feito, ta de namorico, e já faiz um bão tempo, ca Bibi, fia do Rubão e da dona Quiquí; moça prendada a Bibi; sabe cozinhá, fritá, assá, e até perpará içá a menina sabe, que bão! E sabe costurá; é costurêra de mão cheia. Sabe remendá carça, camisa. É moça prendada. É a cara da mãe e o focinho do pai. E ela qué casá co meu Barnabé, que já tá encaminhado na vida; meu fio tem trabaio honesto; é trabaiadô; enfrenta sór e chuva, relâmpo, e pirilampo, e sarampo. Meu fio vai me dá uns cinco neto. A Bibí é muié pa casá, de famia direita, pai e mãe católico, mais ela do que ele. O Rubão, é vredade, não é de í à igreja, não, mas vai; a dona Quiquí traz ele na rédea curta. Ele que farte co compromisso católico dele que a dona Quiquí dá-lhe um sapecão.

O Barnabé, Cérjim, pediu pa Bibi a mão dela em casamento, e ela aceitô. O casório ainda não tá marcado. Mas vai sê saí daqui argum dia, que não tarda. Eu avisarei ocê quano o Barnabé e a Bibi decidí o dia do enlace matrimonial, como diz as pessoa chique. Meu fio pediu pa Bibí, mocinha prendada e bonita que só Deus veno, em casamento, a mão, e não uma, mas as duas. Que felicidade eu tô, Cérjim, ocê não querdita, não magina. Meu fio vai casá ca moça mais bonita do umniverso. Que belezura de nora eu vô te. Que o morfético, o mortiço, o coisa-ruim não estrague a beleza dela; que ele não pense em tal, que desço até o inferno, se ele osá fazé mar pá futura mãe dos meu neto, e com a marreta quebro-lhe o nariz com uma bordoada bem dada no meio da testa, e com o machado fendo-lhe a cabeça de alto a baixo. Meu fio pediu, em casamento, pa Bibí a mão dela, uma só, e vai ficá cas duas, e de brinde vai levá a Bibí intêra pa ele, e até que as morte, a dele e a dela, os separe. A morte vai separá só os corpo, pruque as arma deles viverá junta e unida té o dia do Juízo Final. Depois, é Deus Nosso Senhor quem decide.

Ô, Cérjim, pulei de alegria ansim que meu fio me deu a notícia. Não guento de alegria. É demais alegria po meu coração. Alegria demais.

Mia patroa tá chamano eu, Cérjim. Tenho de dexá o uatesape pa depois. A muié me chama, eu vô.

Então, Cérjim, é esta a notícia que eu tinha pa contá po cê; eu só não digo mais pruque a a mãe dos meus fio tá me chamano. Saiba que tenho mais pa contá. E contá po cê eu contarei em ôtra óra o que tenho pa contá. E o que tenho pa contá não é pôco. A notícia do casamento do meu fio ca Bibí muinto bem fez pô meu coração e pô coração da mia patroa. Tô feliz que ocê nem magina. Se mia patroa dexasse, eu bebia um litro de cachaça, pa comemorá. Daqui uns mês serei vovô. E com a graça de Deus Nosso Senhor.

Agora, despeço-me de ocê, meu amigo, e vô-me embora pa Pasargada. Não sei onde fica esta terra; só sei que é tar terra uma terra de alegria, de felicidade, de poesia.

Té ôtra hora, Cérjim. E que Deus Nosso Senhor proteja ocê e a sua famia. Inté.

Morte digna

 Morte Digna


- Nos dias de hoje, as pessoas pensam cada uma em si, e apenas em si, cada uma em si mesma, e em mais ninguém. São individualistas, egoístas.

- É verdade. Concordo.

- Ocupa-se cada pessoa consigo mesma, cada pessoa a olhar apenas para seu umbigo, sem olhos para outras pessoas, e não se interessa pelo bem comum, o bem coletivo, o bem da sociedade, o bem de todos. Toda pessoa individualista é egoísta. Desinteressada da sociedade, da coletividade, vive apenas para si.

- Concordo. Concordo, em tipo e grau, com o que você disse. Você está coberto de razão.

- São as pessoas individualistas; e sendo individualistas, são egoístas. As pessoas individualistas, egoístas, não têm espírito coletivo, não participam da justiça social; não compartilham seus bens, suas riquezas; não se ocupam com o que, acreditando que não lhes são importantes, é valioso para a coletividade.

- É verdade. Concordo. Não tenho ressalvas a fazer.

- Que sejam reeducadas as pessoas. Que tenham os governos consciência da importância da educação de todo o povo para o bem-comum, coletivo, e o abandono do atual estado de coisas individualista. Se cada pessoa ocupa-se unicamente com o que lhe faz bem, a sociedade perece. Ou se educa para a coletividade, toda pessoa a entender que tem de viver para o bem coletivo, e não para o individual, ou a sociedade morre. Se faz urgente uma educação em favor da coletividade, e não, favorecendo o indivíduo, ir em detrimento dela.

- Concordo. Você está coberto de razão.

- Se toda pessoa pensar apenas em si mesma, e pôr seus interesses pessoais acima dos interesses coletivos, a sociedade implode; torna-se impossível o convívio social harmonioso, fértil, havendo indivíduos descompromissados com o bem-comum

- Concordo. Concordo.

- As pessoas individualistas não têm compromisso com a sociedade; acreditam que os interesses individuais são mais valiosos do que os coletivos. Elas têm de aprender, e aprender de um jeito qualquer, que elas não existem se a sociedade não existe. É a sociedade que as sustenta, que as mantêm vivas.

- De fato. É verdade. Concordo.

- Vejamos a economia de um país. Um país de economia fraca está fadado à extinção. É imprescindível que uma sociedade concentre seus recursos econômicos em prioridades, que os governos têm de definir, governos, claro, conscientes do valor da coletividade, e não governos que bebem na mesma fonte cultural individualista que está a destruir a sociedade moderna. Sendo irresponsável um governo, governo, claro, que atende aos interesses egoístas dos indivíduos e ignora os da coletividade, cabe aos que podem substituí-lo por governo compromissado com o bem coletivo, que saiba definir as prioridades, assim empregando, adequadamente, os recursos públicos em políticas apropriadas para o eficiente e correto uso deles, sem desperdício, sem gastos desnecessários. E uma das principais prioridades, senão a principal, e talvez a única, é a da conservação da saúde, da saúde e do bem-estar das pessoas que produzem riquezas, das pessoas que trabalham, das pessoas que têm valor econômico, das pessoas ativas, das pessoas produtivas, e não das pessoas improdutivas, das pessoas que não têm valor econômico, das pessoas que consomem recursos públicos sem que nenhum produza. Empobrece a sociedade, caso ela se veja em dificuldades, se nela há muitas pessoas doentes, pessoas enfermas, pessoas incapazes, que lhe consomem os recursos econômicos, e os recursos econômicos são limitados, escassos, e se faltam às pessoas produtivas, economicamente úteis, elas ficam impossibilitadas de produzir. As pessoas de valor econômico, ativas, produtivas, são imprescindíveis ao bem coletivo, à vida em sociedade. Portanto, os recursos econômicos têm de ser canalizados para investimentos em pessoas saudáveis, produtivas.

- Concordo. Não há riqueza social se não há quem a produza.

- E a produzem as pessoas socialmente comprometidas com o bem coletivo, e não as pessoas que ocupam as vinte e quatro horas do dia com tarefas que lhes satisfazem os desejos individualistas, egoístas, e com os seus sentimentos, que atendem às suas veleidades, que são individuais, socialmente corrosivas, portanto.

- Exatamente. Concordo. Nenhuma objeção eu tenho a fazer.

- As pessoas economicamente incapazes, irrelevantes, que não participam com tarefas que estejam em favor do bem coletivo, e que consomem os recursos econômicos, que são escassos, repito, e não ajudam a aumentar, ou simplesmente conservar, a riqueza social, não são imprescindíveis.

- É verdade. É verdade. Você está com a razão.

- Durante estes dias que, somados, dão quase dois anos, em que, para impedir a disseminação de um vírus, nos sacrificamos pelo bem-comum os homens economicamente produtivos e coletivamente comprometidos, descobrimos que a sociedade não se depararia com todos os contratempos, que lhe dão prejuízos imensuráveis, se todas as pessoas, instruídas a concentrarem todos os seus esforços e todos os seus recursos no bem coletivo, agissem com responsabilidade social, coletiva, e não com o objetivo de satisfazerem, exclusivamente, os seus desejos individualistas, egoístas. E se não houvesse milhões de pessoas economicamente improdutivas, inúteis, que nada fazem além de consumir recursos públicos, que, escassos, faltam aos que, socialmente responsáveis, produzem riqueza, a coletividade usufruiria de um padrão de vida infinitamente melhor do que o que possui. Unidas, as pessoas economicamente inúteis e as individualistas prejudicam, imensamente, a sociedade, a coletividade. Desperdiçou-se, nestes vinte e quatro meses, muito dinheiro com coisas inúteis e na manutenção de pessoas que nada produzem, irresponsáveis, egoístas.

- Concordo. Os recursos públicos tinham de ser melhor aplicados.

- Em tempo de crise provocada por um surto epidêmico viral o individualismo é fatal para a existência da sociedade.

- Concordo. Concordo mil vezes.

- As pessoas improdutivas, não é errado, e tampouco injusto, dizer, parasitam o corpo, o corpo social, coletivo, que já está doente, e lhe suga, e lhe suga até à exaustão, as forças, poucas, que lhe restam, causando-lhe a morte.

- É verdade. É verdade.

- As pessoas individualistas são parasitas.

- Concordo.

- As pessoas improdutivas são prejudiciais à sociedade.

- Verdade.

- O bem coletivo é importante; o individual, não.

- Concordo.

- Para o trabalho, ingente, e dispendioso, de combate à disseminação do vírus, a sociedade teria, para evitar o colapso dos sistemas de saúde público e privado, de concentrar todos os seus meios econômicos no tratamento de pessoas infectadas pelo vírus. Não foi o que se viu, infelizmente. Para nosso horror de homens comprometidos com o bem coletivo, cada pessoa, pensando em si, e apenas em si mesma, desperdiçou recursos econômicos que fizeram falta à política de combate ao vírus, que, espalhando-se rapidamente de pessoa para pessoa, infectou milhões de pessoas, afetando, dolorosamente, o sistema de saúde, colapsando-o.

- É verdade. É verdade.

- Outras medidas precisam ser tomadas para se evitar o recrudescimento da crise que se instalou no sistema de saúde.

- Quais?

- Antes de dizer quais medidas têm os governos de tomar, tenho a dizer que para o bem maior, o bem coletivo, temos de abandonar as nossas veleidades, as nossas idiossincrasias, sacrificar pequenos sonhos, pelo bem-comum, em benefício da sociedade, que progredirá se toda pessoa deixar de lado seus desejos egoístas e adotar uma postura de responsabilidade social, coletiva, e comprometer-se com o bem da coletividade, da maior coletividade que há: a humanidade.

- É verdade. É verdade.

- Se cada pessoa pensar em si mesma, exclusivamente em si mesma, indiferente e insensível à humanidade, esta perecerá.

- Concordo.

- Você me pediu que eu dissesse quais são as medidas que são essenciais para se evitar o colapso do sistema de saúde. São várias as medidas. Não citarei todas, de tão numerosas elas são. Concentrar-me-ei em uma delas, imprescindível ao bem coletivo. A da qual irei falar é a mais importante das medidas políticas, a que poderá, associada com outras, afastar da foice da morte a civilização humana. Trata-se da política, humanitária, inspirada nos maiores tratados humanistas modernos, que oferece às pessoas idosas incapazes de exercer qualquer atividade econômica, pessoas, portanto, que não podem exercer trabalho produtivo, e aos enfermos, principalmente os afetados por doença neurológica que os faz ineptos para o labor diário, seja braçal, seja intelectual, ou artístico, ou esportivo, os meios apropriados para uma viagem, melhor, passagem, e passagem indolor, do seu estado material para o seu estado imaterial.

- Não entendi. O que você propõe?

- Não quero que você me compreenda mal. Estou a cuidar do vocabulário que usarei para expor o meu pensamento, que é o de intelectuais e médicos e cientistas conceituados, renomados, donos de títulos chancelados por responsáveis organizações internacionais e por instituições de pesquisas e de ensino que estão entre as melhores do mundo; não quero que minhas palavras sejam mal interpretadas. O tema exige cuidado com as palavras, para se evitar mal entendidos. É o assunto muito sensível. Nos países ricos, entre os círculos mais altos das academias e da intelectualidade e da política, está o debate avançado; é o tema, aqui, país de terceiro mundo, onde ainda prevalece a cultura medieval, é tratado com incompreensão pelos fundamentalistas religiosos, que, intolerantes, de espírito antiquado, não apreendem a sua importância. Há muito a se fazer para esclarecer o povo, que ainda vive na idade das trevas, acerca do assunto. Digo que a política que tem o poder de, se não eliminar, reduzir consideravelmente os males que nos acossam a nós humanos, oferece às pessoas que insistem em acreditar na vida eterna, espiritual, na vida após a morte, uma passagem, salutar, de regresso de sua alma ao seu estado prímevo, o de antes de vir a habitar um corpo, um corpo físico, material, e às que jamais alimentaram tais fantasias a supressão de sua consciência, isto é, da consciência de seu estado físico, corpóreo. Em outras palavras, a política, que é imprescindível ao bem coletivo, à melhoria das condições de vida em sociedade, propõe suprimir das pessoas suas atividades corporais.

- Você quer dizer que para se evitar o colapso do sistema de saúde deve-se matar os velhos, os enfermos, os doentes mentais!?

- Você usa expressões muito fortes para designar um ato humanitário benéfico à humanidade. Não é a morte de tais pessoas que eu proponho, mas a morte digna, para o bem-comum. Sabemos que em momentos de crise como a que enfrentamos escasseiam os recursos econômicos, que têm de, obrigatoriamente, ser aplicados, e exclusivamente, para o bem coletivo, nas atividades produtivas, que só existem porque há pessoas produtivas, economicamente úteis, pessoas que não desperdiçam recursos, pois, saudáveis, não consomem recursos econômicos com tratamentos médicos, sem que, em contrapartida, participem da produção de riqueza; ao contrário delas, as pessoas de idade avançada, os enfermos, e também as crianças, não nos esqueçamos delas, consomem recursos, que são escassos, repito, e essenciais ao bem-estar coletivo, e nada entregam à sociedade.

- Entendi este ponto. Você está a repetir argumentos. Eu quero saber o que é a tal morte digna de que você falou.

- É o sacrifício de algumas, poucas, pessoas,para a salvação de bilhões de seres humanos.

- É tal sacrifício, a morte de pessoas, assassinato. Explique-se. Estou confuso.

- Você usa expressões muito, muito fortes, e incorretas, e impróprias, para se referir a uma política que é defendida por pessoas iluministas, que, cientes dos problemas que a humanidade enfrenta em tempos de calamidades globais, como a que enfrentamos nestes dois últimos anos, sabem qual é a solução para eles. E é a solução o uso eficiente dos recursos econômicos, que têm de ser canalizados para investimento em pessoas e atividades econômicas produtivas. Eu não falo de assassinato, tampouco de mortes. Eu falo de morte digna, e a morte digna nada mais é do que o tratamento humanitário, segundo os mais modernos preceitos médicos e científicos, de vanguarda, que se oferece às pessoas que, além de não serem economicamente produtivas, consomem recursos que, sendo indispensáveis ao bem-comum, têm de ser aplicados em pessoas e atividades economicamente úteis, atendendo-se, assim, portanto, ao bem-estar coletivo. Aos velhos, aos doentes mentais, aos enfermos, às crianças de pouca idade, pessoas que, além de não produzirem riqueza, repito, consomem parcela considerável da riqueza que as pessoas produtivas criam, oferece-se a morte digna, um tratamento médico e psicológico humanitário. Ouça-me com atenção, e sem se me antecipar ao que irei dizer; e não julgue o valor intrínseco da idéia que irei expor, dela considerando, única e exclusivamente, o seu nome, morte digna, entendendo que se refere "morte" à morte propriamente dita, provocada por agentes do Estado, e tampouco assassinato. "Morte" em "morte digna" não é um ato deliberado de matar pessoas inocentes, indefesas; "morte digna" é sinônimo de uma atividade humanitária a preparar, psicologicamente, as pessoas economicamente inúteis para a compreensão, e consequente aceitação, do sacrifício delas, isto é, do sacrifício de suas pessoas, que existem em desfavor da coletividade, em desfavor do bem-comum. Elas não irão sofrer, pois entenderão que é o papel delas a honrada ação, ato meritório, de se sacrificar pela coletividade. Além do preparo psicológico, tais pessoas receberão tratamento médico condigno com a sua condição humana; os procedimentos serão indolores. Vejamos um exemplo: Uma pessoa nasce com uma doença neurológica que a impede de executar as tarefas diárias mais simples; assim, ela, além de não contribuir sequer com um mísero centavo para a produção de riqueza econômica, obriga outras pessoas, seus familiares, seus parentes, e médicos e enfermeiros, e cientistas, a dela se ocuparem, durante muitos dias, os pais durante vinte e quatro horas por dia, enquanto ela estiver viva, horas durante as quais eles poderiam exercer alguma atividade econômica produtiva; além disso, tal pessoa consome recursos particulares e públicos, que são empregados no seu cuidado, no cuidado de uma pessoa economicamente inútil, recursos que, podendo ser usados para o bem de uma pessoa saudável, economicamente útil, beneficiariam a coletividade, fim único de toda sociedade, de todo grupo social eficiente, que entende a importância do bom e correto emprego dos recursos econômicos. Outro exemplo: Os velhos, principalmente os aposentados e doentes, consomem muitos recursos públicos, riqueza que as pessoas economicamente úteis, ativas, produziram, e recebem, todo mês, a aposentadoria. E o que produzem, se doentes? Nada. São economicamente prejudiciais à coletividade. Consomem recursos econômicos imprescindíveis ao perfeito funcionamento da sociedade, e, para piorar a situação social, exigem cuidados redobrados de seus filhos e netos, e de parentes, e de profissionais da saúde, pessoas, todas elas, que, se dispensadas de tais incumbências, ocupariam o tempo com atividades produtivas, e não o desperdiçariam dedicando-se a cuidarem deles, velhos doentes, que nenhum valor econômico possuem, e empatariam os meios econômicos de que dispõem em tarefas economicamente produtivas. Os velhos aposentados, e, mais do que eles, os aposentados e doentes, fazem a sociedade desperdiçar riqueza que poderia ser empregada em benefício do bem comum, do bem coletivo, do bem social. E é a prioridade, ou devia ser, dos agentes públicos o uso justo, útil, eficiente, da riqueza econômica.

- Você quer legalizar a matança de doentes e velhos!?

- Sejamos racionais. Entenda: Em momentos singulares, e o que vivemos atualmente é emblemático, para se obter o bem-comum, coletivo, da humanidade, pequenos sacrifícios são indispensáveis. É uma questão de custo-benefício. Convêm manter vivas pessoas economicamente inúteis para cuja existência os governos têm de direcionar recursos econômicos, que são escassos, repito, que podem ser usados na conservação da vida de pessoas economicamente úteis, pessoas, estas, que, sem os recursos que lhes permitem produzir riqueza, e ao deus-dará, acabam por adoecerem, assim elevando os gastos públicos? Estamos enfrentando um estado de coisas, que nos causa calafrios, de nos aterrorizar, de levar-nos a perder a esperança de podermos vir, um dia, a criar um mundo melhor, rico, próspero e justo, um outro mundo, perfeito, de justiça social, sem desigualdade renda, e concretizar um ideal democrático de justiça universal. A epidemia do coronavírus ensinou-nos a determinar as nossas prioridades, e nelas nos concentrarmos, e a entender que temos de aplicar os recursos econômicos, que são escassos, repito uma vez mais, no atendimento hospitalar às pessoas infectadas, mas não em todas elas, e sim, unicamente, nas economicamente valiosas, úteis. Infelizmente, os agentes públicos não ousaram, os covardes, os pusilânimes, a dar tal passo, passo essencial para se garantir a harmonia universal entre os humanos, o que se obtêm com justiça social e concentração dos recursos econômicos nas atividades que beneficiam a coletividade, e a coletividade, sabemos, é a única instituição que importa, imprescindível à existência da humanidade. Desperdiçou-se, infelizmente, durante estes dois anos, riqueza incalculável, e irrecuperável, na manutenção de organismos individuais, humanos, os enfermos, os velhos, todos economicamente inúteis, que nenhuma contribuição fazem à sociedade humana, à humanidade. Leitos de UTI os ocuparam durante meses velhos doentes, inúteis, inválidos; tais leitos os poderiam ocupar pessoas economicamente produtivas, úteis à coletividade.

-- Você quer dizer que os idosos doentes têm de ser assassinados?!

- Você empresta às minhas palavras uma força negativa que elas não possuem, e julga-me, assim entendo, certo de que eu sou um personagem iníquo, indigno de apreço, de valor. Entenda-me: O importante é a coletividade; e não os indivíduos. Uma sociedade é saudável se os indivíduos que a constituem são saudáveis. Ao suprimir à vida pessoas economicamente inválidas, inúteis, favorece-se a coletividade, enriquecendo-a. Todos os esforços devem ser concentrados no atendimento de pessoas que produzem riqueza, e não nas economicamente inválidas. E mais: não se trata de assassinar, friamente, as pessoas prescindíveis, em momentos de ameaça existencial à humanidade, à coletividade; trata-se, é a idéia central, que estou a esposar, defendida por intelectuais, e médicos, e cientistas, de salvar pessoas, as economicamente úteis à coletividade, ao mesmo tempo que se oferece às que serão sacrificadas tratamento humanitário em seu processo de supressão à vida corporal, indolor.

- E qual é a participação dos familiares nessa história? E os sentimentos deles? Velhos doentes e doentes mentais, enfim, as pessoas que, na política de saúde que você defende, são economicamente inúteis, todas elas, têm familiares, têm parentes, têm amigos.

- Os sentimentos dos familiares, dos parentes, dos amigos, devem ser desconsiderados. Os sentimentos são valores que fazem egoístas as pessoas; pessoas têm sentimentos, portanto, os sentimentos são fenômenos pessoais, de indivíduos, são valores individualistas, e não coletivistas; engendram o individualismo, e não o coletivismo; atendem a desejos individuais, e não aos interesses coletivos. Os familiares, os parentes e os amigos têm de entender que a morte de seus entes queridos, acompanhados de zelosa equipe médica, que se dedicará a oferecer-lhes a morte digna, isto é, sem sofrimentos, sem dor, humanitária, é um pequeno sacrifício em benefício do bem maior, do bem coletivo, do bem universal, do bem da humanidade, que será vitoriosa ao fim de tal aventura, uma aventura universal.

- É desumano. Você pede pela morte, pelo assassinato, de pessoas, de pessoas que, entenderá sabe-se lá quem, e com quais critérios, são economicamente inúteis. É desumano.

- Não é desumana a morte digna. Saiba que ela não é desumana. Ela é imprescindível para o bem da coletivdade. Não se esqueça: Você concordou com todas as premissas; você entendeu que é o individualismo prejudicial à coletividade; você entendeu que em tempos difíceis se faz indispensável o uso da riqueza econômica em favor da coletividade; você entendeu que para o bem da coletividade sacrifícios pessoais, individualistas, são imprescindíveis; você entendeu o que eu disse, e concordou com o que eu disse.

- Não. Você usou de uma artimanha para me engabelar. Você armou-me armadilhas retóricas para me induzir a concordar com uma idéia absurda, desumana. Reprovar nas pessoas o egoísmo é uma coisa; justificar um valor coletivista que exige a morte de pessoas doentes, idosas, é outra.

- Você persite no erro de considerar desumana uma política humanitária. A política de morte digna é digna de apreço pelas pessoas que não têm o espírito carcomido por preconceitos medievais, de fundamentalistas religiosas. Um dia, talvez, quem sabe, e eu acredito que será difícil, para não dizer impossível, você se liberte dos grilhões culturais nefastos, corrosivos, que impedem você de apreender o valor humanitário da política da morte digna. Quem sabe!? Tenha um bom dia.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Um conto e uma crônica

 A Morte do Tiziu - mensagem do Barnabé Varejeira


Bão dia, meu querido amigo, amigo do peito, Cérjim, que tá no meu coração. Com a graça de Deus, Cérjim, hoje eu tô digitano, cos meus dedo, no meu celulá, esta mensage po cê, e estou muinto animado, muinto feliz, feliz pruque tô vivo, pruque minha óra ainda não chegô. Tô vivo, e a mia muié tamém, e tamém os meu fio, pruquê Deus ansim quis, e ansim quer. É d'Ele a vontade de me dexá vivo até agora. Que Deus seja lovado. Quando Ele achá que tá na óra de eu í desta pa onde Ele achá que devo í, vô. Que escoia eu tenho?! Manda quem pode; obedece quem tem juízo. E quem pode é Deus. Então, pa mim, resta-me o juízo.

Já faz um bom tempo, né, Cérjim, que nós não se fala pelo Uatesape. Um bom tempo. Eu mando um bão dia po cê, com desenhinho animado, e tamém mando ba noite, e ocê devórde bão dia e ba noite cos desenhinhos animado, figurinhas alegre, e só. Mas hoje eu tirei um tempo da mia vida atarefada pa contá po cê uma instória divertida, divertida pa dedéu, que aconteceu hoje cedo, mas que não começô o seu começo hoje; o começo da instória começô ônte à noite; e a instória terminô hoje cedo, cedinho. Foi um acontecimento muinto engraçado. Engraçado pa dedéu. Ocê nem imagina o que aconteceu. Nem imagina. Foi por demais engraçado. Não me guento de tanto ri. Não me guento. E tenho obrigação de contá po cê o que aconteceu de tão engraçado. Ocê tem de sabê o que foi. Não me guento de tanto ri, Cérjim. Não me guento. Não me guento. Os meu sorriso vão de uma oreia à ôtra, e vórta da pa qual foi pa da qual saiu. Vão e vórta de uma oreia pa ôtra, sem pará. Foi engraçado demais, Cérjim, muinto engraçado, o que se deu hoje cedo. Muinto engraçado. Ocê tinha de vê. Foi muinto engraçado. Meu Deus do Céu! Cada uma que acontece, aqui, que ocê nem querdita. Ri tanto, tanto, mas tanto, que os botão da mia camisa arrebentáro, e a fivela da cinta estorô. E eu soei três litro de suor, de tanto que ri. Fiquei encharcado. Jesus Cristo Nosso Siôr, Fio de Deus! É cada uma, Cérjim, que só Deus veno! É cada coisa que acontece. Não consigo digitá direito as palavra da instória. Se ocê vê os meu erro de prutuguês, com letra fora do lugar, uma letra engolino ôtra, desconsidere os erro, e me perdõe. Não consigo segurá o celulá, de tanto estô rino. Parece, inté, que aconteceu ônte o que tenho pá contá po cê, mas num aconteceu ônte, não; aconteceu hoje, hoje cedo, um pôco depois de o Garrincha cantá o nascer do sór. E canta que é uma beleza, o meu garnizé, que já tá véinho, coitado. Mas ainda canta, e canta tal qual um tenor intaliano, daqueles gordo, cheio de ar nos purmão. É cada uma que acontece, que a gente contano, todo mundo pensa que é mentira. E eu tô só embruiano a instória. E não tô contano ela po cê. Vâmo deixá de enrolação, de lerolero, e vâmo pa instória que nos interessa, instória muinto engraçada. É engraçada pa dedéu, ocê vai vê.

O seu António, o nosso Tóninho, óme bom e trabaiadô, casado ca dona Lulu, muié trabaiadêra que só veno, tem quatro fio, dois óme e duas muié. Um dos óme é o Fernando, o Nandinho, bicho branco inguar arroz descascado; a gente, só de pirraça, chama ele de Tiziu; e o ôtro fio do Tóninho e da dona Lulu é o Lúcio, óme tão pequeno, menor que pé-de-arface, que parece um canarinho, e tem cabelo espetado; e chamamo ele de Urubu; ele é branco, o coitado, mais branco do que o irmão, e não gosta que a gente chama ele de Urubu, mas a gente, mermo ansim, só pa arrumá encrenca e deixá ele bufano de raiva, com vento nas fuça, chama ele de Urubu.

E agora conmeça a instória de hoje cedo, instória que começô ônte à noite. Quero dizê: a instória já aconteceu, e aconteceu hoje cedo, e parece que foi ônte, e agora coméço a contá-la po cê, po cê conhecê-la. Até agora eu só escrevi a introdução; agora, vâmo à instória intêra.

O Tiziu sumiu. Sim. Ele sumiu. O que não é de espantá ninguém; e todos já estamo habituado com os sumiço dele; não é a primêra vez que ele some, e não será a úrtima. E não sumiu hoje; sumiu ônte à noite. Era onze da noite, o céu ia condecorado de estrela, e tudo ia carmo, na santa paz. E a dona Lulu começô a percurá pelo fio desaparecido, nas redondeza, ino de casa em casa, pedino notícia do dito cujo pa todas as pessoa. E ninguém lhe dava notícia do fio, que tomara chá-de-sumiço, era certo, mais certo do que dois e dois ser quatro, e uma dúzia ser doze. E onde tava o Nandinho, o nosso Tiziu? Ele, Cérjim, é óme feito, mas não regula bem da cabeça, não tem cabeça boa, não. Diz o ditado que quano a cabeça não pensa, o corpo padece. Quem foi o primêro óme que ditô o ditado, e pa quem o ditô, não sei. Sei que o ditado se encaixa, à perfeição, no Tiziu. Parece, inté, que foi inscrito pa ele. Enquanto a dona Lulu percurava o fio sumido, o seu Tóninho bebia cerveja, co Grilo e co Gafanhoto, irmãos gêmeo que se parecem um co ôtro e são unha e carne, e a corda e a caçamba, e comigo e co Ruivo, no bar do Zé Carrapato, e não tava nem aí ca órde do dia. Tava sossegado o seu Tóninho. Mas o sossego dele acabô ansim que a dona Lulu entrô no bar, toda esbaforida, suano em bicas, de óios arregalado inguar trasêro de vagalume, o coração dano pinotes, e falô, com voz esganiçada, po marido dela, que ela desposô, na santa igreja, diante do padre:"Tónho, o nosso fio sumiu." E o seu Tóninho arrespondeu-lhe, carmo: "Não se percurpe, muié. Logo o Nandinho aparece." E nem percisô a dona Lulu falá que quem sumira fôra o Tiziu pa o seu Tóninho sabê de quem se tratava. É só o Tiziu que some. O Urubu, embora não bata muinto bem dos pinos,tem juízo. Ansim parece. E o seu Tóninho, a tranquilidade em pessoa, bebeu de um pôco de cerveja, enquanto a dona Lulu, de óios arregalado, cas mão no peito, percurpava-se com o fio desaparecido. Enfim, todos fômo cada um pa sua casa. E o Zé Carrapato fechô as porta do bar. Já era bem tarde. Passava das meia-noite. A dona Lulu varô a noite em claro, percurpada com o fio desaparecido, que não aparecia de jeito nenhum, não dava sinal de sua beleza po mundo. E o seu Tóninho drumiu inguar pedra, pois sabia que o Tiziu ia aparecê mais cedo ô mais tarde; sempre que some,o Tiziu quase sempre aparece mais tarde. E desta vez não foi diferente. Ô foi? O Garrincha cantô. E cantô bonito. Parecia, inté, que havia marcado um gol. E nós, eu, mia muié, os gêmeos Grilo e Gafanho, e a dona Maria dos Doce, e a dona Quitéria, e o seu Janjão, e o Zé da Botica, e a dona Natinha, e a Vó Preta, e inté o Zé Carrapato,fomo pa casa do seu Tóninho e da dona Lulu sabê notícia do desaparecido Tiziu. Tava todo mundo percurpado; mais percurpado ca saúde da dona Lulu do que co Tiziu, que, todos sabia, ia aparecê, mais cedo ô mais tarde. E era umas nove óra aparece na casa do seu Tóninho e da dona Lulu o Tião do Cemitério, que é segurança, que não segura nada. E pode ele segurá arguma coisa com aquela pança de muié prenha!? Não pode. É imporssíve. E o Tião, cos passo medido, ca cara vexada, tímido, falô pa dona Lulu e po seu Tóninho estas palavra: "Seu Tónho, dona Lulu, eu tenho uma coisa pa contá po ceis dois, mas tô um pôco vexado de contá. É uma instória triste, tão triste que me dói o coração. O fio do ceis, o Fernando, tá lá no cemitério." Foi um deus-nos-acuda, Cérjim. A dona Lulu desmaiô nos braço do seu Tóninho. E corre um daqui, pa pegá cadêra, e corre ôtro dali, pa pegá água pa dona Lulu; e um acóde ela; e ôtro presigna-se e pede a Deus a sarvação da arma do Tiziu. Todos ficamo tonto ca notiça. A dona Lulu acorda do desmaio, bebe de um pôco de água do copo que arguém, não me alembro quem, lhe ofereceu, e, o coração parado, preguntô po Tião do Cemitério: "De que ele morreu, Tião?", e o Tião, apalermado, respondeu-lhe: "O Fernando morreu!? Ele não morreu, não, dona Lulu. Eu o encontrei, agorinha cedo, deitado, perto do túmulo do Prefeito, vivinho-da-silva. Ninguém encomendô a arma dele, não, dona Lulu. Ele tá dormino, lá,perto do túmulo do Prefeito, e fedeno cachaça." E todos gargaiamos, de alívio. Tá vivo o Tiziu, aquele manguaça. Que susto ele deu em nós, se nem magina, Cérjim.

É esta é a instória que eu queria contá po ce. E contei. É triste, e divertida tamém.

Mande mensage pa mim, Cérjim. Dê notícia daí da cidade. Ansim que eu tivé ôtra instória pa te contá, conto. Fique co Deus Nosso Senhor Menino Jesus, fio de José e da Santa Maria. E tenha um bão dia. Té breve.


*


A Difícil Arte de Arrumar no Prato o Arroz e o Feijão.


- Bom dia.

- Bom dia.

- O senhor pode nos conceder um minuto do seu tempo para nos responder uma pergunta a respeito dos seus hábitos alimentares?

- Sim.

- O senhor já almoçou, hoje?

- Já.

- O que o senhor comeu?

- Tomate, ervilha, ovo frito, cebola, e um bife, e arroz e feijão.

- O senhor comeu arroz e feijão?

- Sim.

- O senhor pôs o arroz em baixo, ou em cima, do feijão?

- Em cima.

- O senhor conhece os estudos sociológicos e antropológicos a respeito da disposição do arroz e do feijão no prato?

- Não.

- O senhor sabe qual é o simbolismo que a disposição, no prato, do arroz em cima do feijão representa?

- Não. Existe um símbolo?

- Sim. Existe, sim, senhor. O senhor sabia que é a mensagem implícita o ódio que o homem branco sente pelas pessoas negras? Sendo o senhor um homem branco...

- Que!? Absurdo! Eu não odeio os negros.

- Odeia, sim.

- Não odeio, não. Tenho muitos amigos negros. E uma das minhas duas cunhadas é negra. E ela é mulher honesta, esposa exemplar de meu irmão, mãe dedicada, amorosa. Mulher respeitável, adorada, e com ela dou-me muito bem.

- O senhor não sabe que odeia os negros, mas os odeia. O sentimento de ódio está implícito no ato de pôr, num prato, o arroz em cima do feijão. Estar em baixo é o mesmo que inferioridade, e estar em cima, superioridade. No subconsciente coletivo de um povo branco patriarcal, de passado escravocrata, todo ato carrega uma carga emocional de preconceito racial, inscrito nos genes do homem branco; sem o saber, deixa-se transparecer tal valor racista nos mais simples gestos. O senhor já se perguntou porque o senhor põe o arroz em cima do feijão?

- Mas o feijão que eu como não é preto; é marrom, carioquinha, e marrom bem claro, quase branco.

- No inconsciente coletivo, o feijão representa a pessoa negra.

- Eu nunca pensei tal pensamento. Que eu saiba, feijão é feijão, seja o carioquinha, que eu como todo dia, seja o preto, que eu como, nos churracos, nos fins-de-semana.

- O senhor nunca pensou no simbolismo da disposição do arroz e do feijão, no prato, o arroz em cima do feijão, porque o senhor herdou de seus ancestrais brancos o preconceito do homem branco pelo homem negro.

- Para mim, feijão é feijão, e arroz arroz. Não há homem branco e homem negro em tal história; há apenas arroz e feijão.

- Realizamos interessantes estudos de comportamento a respeito dos hábitos das pessoas brancas. O senhor não imagina a carga emocional de ódio ao negro que o senhor carrega no seu subconsciente.

- Eu não odeio os negros.

- Odeia, sim.

- Eu, que me conheço há cinquenta anos, sei que não os odeio, e você, que nunca vi mais gordo, quer me dizer que me conhece melhor do que eu me conheço?!

- Estudei, na faculdade, sociologia,antropologia, e psicologia. Tenho amplos conhecimentos de psicologia social e de sociologia da psicologia, sociologia da história, sociologia genética, antropologia social, e outras disciplinas do campo de humanas. Sei ver além do que as pessoas sem instrução conseguem, e podem, ver: todas as pessoas brancas, já é do conhecimento de todos os estudiosos de humanas, carregam, no mais íntimo de seu ser, o ódio preconceituoso pelos negros. E no ato de pôr o arroz em cima do feijão está implícito tal preconceito racial.

- 'tá bom. Você me convenceu. A partir de amanhã, irei pôr o feijão em cima do arroz.

- O senhor sabe qual mensagem está implícita em tal disposição, o arroz em baixo do feijão? O senhor tem idéia do valor simbólico do arroz em baixo do feijão?

- Sei: a de que eu gosto de comer feijão e arroz.

- Qual é a mensagem implícita na disposição, no prato, do arroz em baixo do feijão?

- Mensagem implícita!? E há mensagem implícita?!

- Há.

- E qual é? Diga-me, sabichão.

- Eu já disse ao senhor que o feijão é o símbolo da pessoa negra; e o arroz, digo, é o da pessoa branca. Ao pôr o feijão em cima do arroz, o homem branco, ao se pôr a comer do almoço, irá, primeiro, comer o feijão, que está em cima do arroz, e, depois, se a fome ainda lhe alimentar espírito, irá comer o arroz, que está em baixo do feijão. O senhor não percebeu o símbolo racial que tal disposição do arroz e do feijão representa. Fosse o senhor um homem instruído, o detectaria, no ato. Veja: se está o feijão, que representa a raça negra, em cima do arroz, que representa a raça branca, então, a pessoa, ao pôr-se a comer do que há no prato, leva à boca, primeiro, o feijão, que representa, repito, a raça negra; é, portanto, o corolário: mata-se a gente negra, primeiro; se a fome persistir, mata-se a gente branca; se não, a gente branca salva-se. Mas os negros sempre são sacrificados.

- Que absurdo.

- Absurdo?! O senhor não faz idéia dos significados raciais do simples ato de arrumar, no prato, arroz e feijão. E não fazendo idéia, não pode alcançar seu espírito, de homem branco de uma sociedade de passado escravocrata, e assim jamais empreenderá esforço sincero para apreender a mensagem implícita em todos os seus atos de herdeiro cultural de uma sociedade racista. Ao pôr o arroz em baixo do feijão, está-se, sem o saber, a indiciar que se está disposto a, é o desejo subjacente, sacrificar o povo negro, e talvez avançar contra o povo branco, ato, este, simbolizado no apetite, que talvez não seja tão feroz quanto se pensou que fosse ao preparar o prato; aqui, o homem branco, deixando, no prato, de resto, o arroz, está a comunicar seu desejo de livrar da morte os brancos.

- Eu jamais deixei restos... Não desperdiço comida.

- Não vem ao caso, se o senhor deixa, ou não, restos. O simbolismo do sacrifício dos negros está implícito no ato de pôr o feijão em cima do arroz, independentemente de o homem branco comer, ou não, todo o arroz.

- Tudo bem, amigão, tudo bem. Não irei pôr o feijão em cima do arroz. A partir de amanhã, melhor, a partir de hoje, à noite, se eu jantar, irei pôr o feijão no lado direito do prato, e o arroz no esquerdo.

- O senhor já pensou no simbolismo implícito de tal ato?

- Que simbolismo implícito!?

- É unânime, entre os historiadores, que o nazismo e o fascismo são ideologias políticas situadas à direita do espectro político; portanto, ao se pôr o feijão à direita do arroz, associa-se a raça negra ao fascismo e ao nazismo; sabendo-se que tais ideologias as defendem tipos humanos inescrupulosos, sórdidos, genocidas, associa-se os negros à sordidez, ao genocídio.

- Então, irei pôr o feijão à esquerda do arroz.

- O senhor não está me entendendo.

- Não?!

- Não. Veja bem. Há duas ideologias políticas: a da esquerda e a da direita. A da direita é extremista, intolerante, radical, fascista e nazista, e racista. Persegue, e mata, as pessoas da esquerda, para dizimá-las. A esquerda, que é democrática, é defensora da justiça social. Ao separar o feijão, no prato, à esquerda, e, à direita, o arroz, cria-se um símbolo de segregação racial, isolando-se dos brancos os negros, assim facilitando, pelos brancos, que são racistas, a identificação dos negros, o que favorece a perseguição e a morte destes por aqueles. Está implícita tal mensagem em tal disposição, no prato, do arroz e do feijão. É um símbolo...

- Já entendi, amigo, já entendi. Amanhã, no almoço, eu farei o seguinte: em vez de pôr o feijão à esquerda, ou à direita, e o arroz, à direita, ou à esquerda, irei pôr o feijão na metade do prato mais distante de mim, e o arroz na metade mais próxima.

- Se o senhor entendesse a mensagem implícita em tal símbolo, que está implícito...

- E há símbolo implícito, neste caso, também?!

- Sim. Há. O senhor nunca estudou simbologia da culinária, da cultura da alimentação, e da associação umbilical entre os alimentos e a cultura história dos povos. Infelizmente, muitas pessoas preferem ignorar tal assunto, e zombar de quem se dedica a estudá-lo, do que reconhecerem-se ignorantes. Estudei o assunto racial durante vários anos. E sei o que digo. E entendo as mensagens implícitas nos atos mais comuns dos homens, que ignoram o real, verdadeiro símbolo deles. O senhor não faz idéia de qual é a mensagem implícita em se pôr, no prato, mais distante da pessoa, o feijão do que o arroz.

- E qual é a mensagem implícita? Estou curioso para saber qual é.

- É a mensagem implícita à do desprezo do homem branco pelo homem negro.

- Você está me dizendo que eu desprezo os negros?

- Sim.

- Eu já disse para você, cara, que tenho amigos negros e uma cunhada negra. E eu os amo.

- O senhor pensa que os ama. O senhor quer acreditar que os ama, mas o senhor os odeia.

- Eu os odeio!?

- Sim. O senhor os odeia. O senhor não sabe que os odeia. Mas eu sei que o senhor os odeia. Os meus estudos, em faculdade renomada, garantem-me a certeza da minha asserção. O feijão, no prato, na metade mais distante de quem arrumou o prato, é o símbolo do desejo dos homens brancos manter os homens negros longe, distantes, pois o contato do corpo dos brancos com o corpo dos negros, enoja os homens brancos, que não desejam sequer sentir o odor corporal dos negros. Os homens brancos, com tal disposição do feijão e do arroz no prato, é o símbolo representado, quer manter os homens negros afastados, pois os despreza.

- Então, eu irei pôr o feijão na metade do prato que estiver mais próxima de mim.

- O senhor quer manter os negros à rédea curta, não é mesmo?

- Que!? Ora, eu ponho o feijão mais perto...

- E por que o senhor irá pôr o feijão mais perto do senhor? Não nos esqueçamos: o feijão é o símbolo da raça negra. O feijão mais perto, no prato, de quem no prato o arruma, indica que o homem branco quer que os negros fiquem ao alcance de suas mãos, para mais facilmente capturá-los caso eles queiram fugir; e o arroz, no prato, na metade mais distante, indica o homem branco, que impede a fuga do homem negro, cercando-o.

- Eu nunca pensei em tudo o que você me disse. Se separar, no prato, o arroz e o feijão é ato reprovável, condenável, então, na minha próxima refeição, que se dará, hoje, à noite, no jantar, ou amanhã, no almoço, ao meio-dia, irei misturar o arroz e o feijão. E a partir de então, eu não mais irei separá-los. Ficarão misturados para sempre.

- Na mistura do arroz com o feijão está implícito o desejo de promover a miscigenação.

- E não é bom?! Assim, todos miscigenados,não havendo brancos e negros, não haverá atritos entre negros e brancos, que, juntos e misturados, constituirão uma, e só uma, e apenas uma, raça. E teremos harmonia entre os povos. Não haverá mais guerras raciais.

- O senhor se engana.

- Engano-me!?

- Sim. Engana-se. O senhor foi seduzido pelo discurso do brasileiro gentil que acredita numa idéia falaciosa: a da democracia racial. Tal idéia promove a extinção, dentro de quatro, cinco, seis gerações de miscigenados, da raça negra. Ora, sabe-se que, os da primeira geração de um casal composto por um negro e uma branca, ou por um branco e uma negra, tem pele mais clara do que a do genitor, ou genitora, negro, negra, e se este produto miscigenado da primeira geração conjuga-se com um branco, ou com uma negra, a geração seguinte terá pele ainda mais clara do que a do seu ascendente imediato. Com o passar das gerações, os negros desaparecerão. E é este o símbolo da miscigenação, símbolo que está implícito na mistura, no prato, de arroz e feijão. É a sua mensagem implícita o genocídio da raça negra.

- Parece-me que você entende de símbolos e mensagens implícitas.

- Sim. Entendo. Estudei, eu já disse, e repito, sociologia e antropologia e psicologia. Tenho formação intelectual apropriada para saber o que alimenta o ser dos seres humanos. O senhor prova, ao acreditar que é a miscigenação benéfica à sociedade, que não entende seus desejos e pensamentos.

- Eu não sei o que desejo e penso? A miscigenação...

- O senhor não tem o preparo intelectual para se analisar, para se conhecer, e tampouco avaliar o que está no seu subconsciente.

- Quer saber de uma coisa, amigão?! Eu jamais irei comer arroz com feijão. Irei pôr, no prato, a partir de agora, apenas arroz, e só arroz.

- O senhor, assim agindo, dará uma mensagem: a de que os negros devem ser extintos.

- O quê!? Eu, desejar a extinção dos negros!? Longe disso! Conheço muitas pessoas negras. Por que eu lhes desejaria a morte?

- É o que o símbolo indica.

- Que símbolo!?

- O da presença de arroz, unicamente arroz, no prato. Se o arroz é o símbolo do homem branco, e o feijão do homem negro, então a ausência, no prato, de feijão representa a exclusão social do homem negro, ou, melhor, de sua extinção, pois a única maneira de excluí-lo definitivamente do convívio social se faz dizimando-o.

- Pôxa vida! Está implícita tal mensagem na participação exclusiva do arroz no prato?!

- Sim. Está.

- Então, o meu prato jamais verá um grão de arroz. Agora, só feijão. Só feijão.

- E a mensagem implícita que tal símbolo representa?!

- Quê!? Você 'tá de brincadeira! Há mensagem implícita, neste caso, também?!

- Sim. Há.

- E qual é?

- O desejo do homem branco de manter cativos na senzala os negros. Neste caso, o prato representa o cárcere, e o cárcere dos negros é a senzala. E é o proprietário da casa grande o homem branco. É o símbolo, em tal caso, o desejo do homem branco em ter os negros sob seu domínio; assim, pode o homem branco vergastá-los, no pelourinho, ao seu bel-prazer sádico, desumano.

- Você venceu, amigão. Você venceu. Jogo a toalha. Fui à nocaute, aceito. Admito a derrota. Entendi o recado: o arroz representa a raça branca, e o feijão a negra. Entendi. Não irei incorrer em outro ato preconceituoso e racista ao comer feijão e arroz. Melhor, ao pôr arroz e feijão no meu prato. Jamais. Nunca. E sabe por quê?

- Não. Não sei.

- Você quer saber por quê?

- Sim. Eu gostaria de entender o que o senhor me disse. Se puder me fazer tal gentileza...

- Sim. Posso. Eu não irei, nem hoje, tampouco amanhã, menos ainda em todos os outros dias que me restarem de vida, comer arroz e feijão. Nunca mais. Não comerei arroz com feijão, nem o arroz, e só o arroz, e muito menos o feijão, e só o feijão. Estou mudando os meus hábitos alimentares. Será outra a minha dieta, e nesta não entrarão o arroz e o feijão; nenhum dos dois. Meus pratos jamais verão arroz e feijão. Jamais me prepararei pratos que tenham, no cardápio, arroz e feijão. Jamais. Você está satisfeito?!

- Você conhece a mensagem implícita...

- Que mensagem implícita!? Não irei pôr arroz em cima do feijão, e nem feijão em cima do arroz, e nem o arroz à esquerda do feijão, e nem o arroz à direita do feijão, e nem... Ora, que mensagem implícita, se no meu prato haverá de tudo, até pedra e tijolo, menos arroz e feijão?!

- Se o senhor estivesse intelectualmente preparado para captar as sutilezas simbólicas dos atos corriqueiros do homem branco, detectaria a mensagem racista que se transmite ao não se pôr arroz e feijão no prato. A ausência simultânea, no prato, de arroz e feijão, simboliza uma artimanha, concebida pela raça branca, de simulação de igualdade entre as raças, sendo que, na verdade, indica o desejo de os brancos induzirem os negros a neles acreditarem, e assim os negros, confiando nos brancos, não se praparam para revidar os ataques que os brancos irão lhes desferir.

- Ah! Pelo amor de Deus! Cansei-me desta conversa, que eu deveria ter encerrado antes de iniciá-la. Dê-me licença. Perdi muito tempo ouvindo suas asneiras. E tenha um bom dia.

- O senhor disse que no seu prato não haverá arroz e feijão, mas haverá pedra e tijolo. O senhor sabe qual é a mensagem implícita...

- Sei. Sei, amigão. Sei. A mensagem implícita está no meu subconsciente: irei esmagar sua cabeça com pedradas e tijoladas. Soterrarei você sob uma tonelada de tijolos e pedras, que são, as pedras e os tijolos, símbolos do meu poder. Agora, suma da minha frente. É uma ordem, cuja mensagem explíta é...

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Uma crônica

 Deus existe?


Chovia a cântaros. O pé-d'água caia havia uns vinte minutos. Os ventos, que até minutos antes deixava a todos suspensos, agora iam ziguezagueando por entre prédios e casas, e árvores, e contornando veículos, a desmanchar o penteado de quem possuía uma boa porção de cabelos, e a espalhar pelas ruas e avenidas e calçadas folhas e galhos minutos antes arrancados à força das árvores. O movimento de veículos, e de ciclistas e pedestres ia retomando seu ritmo normal, caótico e organizado, à medida que a chuva arrefecia-se.

À rodoviária chegaram, quase que ao mesmo tempo, João, José e Pedro, que saudaram-se com os costumeiros apertos de mãos e tapas nas costas e abraços, João, do escritório de contabilidade, José, da loja de calçados, Pedro, da escola. Sabiam eles que teriam de esperar, durante uns trinta minutos, o ônibus chegar para nele embarcarem, ou, brincava Pedro, nele onibuzarem. Tão logo saudaram-se, teceram observações acerca da chuva, que persistia, intermitente, a cair havia oito dias. Falaram poucas palavras acerca cada qual do trabalho que executaram durante o dia. E assim que José falou de sua ida, domingo, à igreja, às onze horas, antes de se dirigir à casa de seus pais, João lhe perguntou:

- José, você acredita em Deus, certo?

- Sim. Acredito.

- Mas você - insistiu João - tem provas da existência de Deus?

- Eu tenho fé, João. A existência da vida é prova da existência de um criador, Deus.

- José, não me leve a mal, não quero ser desrepeitoso. Eu não acredito que a existência da vida seja prova da existência de um criador, um deus; talvez seja a existência da vida prova da existência de fenômenos cósmicos, que a criaram.

- E o que, João, produziu os fenômenos cósmicos? Uma entidade cósmica? E pode-se atribuir a tal entidade a criação dos fenômenos cósmicos, que são a causa da criação do mundo. E que nome lhe podemos dar?

- Eu não entendo a idéia, que os que crêem na existência de Deus defendem, que ensina que existe um ser, assim, como eu direi? vivo, um ser vivo, que criou a vida, a partir do nada,por sua vontade. Qual material tal ser usou para fazer real a sua invenção, o seu projeto, se nada havia?! Se nada havia... Ora, o que nasce do nada? Nada. O ser criador, Deus, assim os nomeia os que acreditam que Ele existe, inventou a vida, primeiro em pensamento, e para Ele a vida era, no início,apenas uma idéia... Ora, o que havia, então? Materiais inertes, sem vida: minerais. E aos materiais, que Ele tinha à disposição, Ele deu vida, animou-os com seu sopro divino. Mas, antes, Ele criou os minerais... Criou-os a partir do quê, se nada existia?! Não entendo... Quem criou os minerais? O mesmo ser, a mesma entidade cósmica, que criou a vida? E por que Ele criaria a vida? E por que criou os minerais? Qual razão para se criar o universo Ele teria? Qual propósito? Se Ele criou a vida, por que não a fez perfeita? O que eu quero dizer com vida perfeita não sei. Não estou me referindo à minha vida, à sua vida, José, à sua vida, Pedro, à nossa vida, à vida dos humanos, à vida dos animais, à vida das plantas; estou me referindo à Vida, vida com "v" maiúsculo... Você está me entendendo, José? Não sei o que penso. Eu me pergunto por que para haver a vida há a morte e por que para se conservarem vivos os seres vivos têm de se matarem uns aos outros. Animais matam plantas, plantas matam animais, animais matam animais, plantas matam plantas. Leões matam zebras, humanos matam bois. Sem se matarem não vivem os seres vivos. Se Deus tem poder para criar, do nada, que existia, um universo, por que não fez a vida com outros ingredientes? O nada existe?! Antes de Deus criar o universo, nada existia. Então... Ora, então o nada existia. E o que era o nada?! Eu penso, e penso, e penso, nestas e em outras questões, e a minha cabeça esquenta-se de tanto pensar, e eu não respondo às perguntas, que são muitas, infinitas, que me faço, e concluo que não há um sentido sequer em se acreditar que Deus existe, e, assim, não encontrando sentido na idéia que ensina que Deus existe, acredito que Ele não existe. Confuso, não?! Muito confuso. Mas não pense você, José, que eu sou um anti-Deus, um descrente fanático, um ateu fundamentalista, destes que querem, e querem com toda a força do mundo, matar Deus e os que n'Ele crêem. Nada disso. Eu apenas não entendo. Se eu sou um ateu?! Acredito que ateu eu seja. A ausência de explicações, que sejam irrefutáveis, para as questões que me proponho, incomoda-me, perturba-me, tira-me o sono algumas noites, e em outras noites, eu vindo a dormir, dá-me pesadelos. Ora, por que Deus não se dá a conhecer a todo mundo, de corpo e alma, para encerrar a discussão?

- Se Deus aparecer para todos, e declarar-se Deus, quem irá acreditar que Ele é Deus? - perguntou, sorrindo, Pedro, que até aquele momento se conservara à margem da conversa entre os seus dois amigos.

- Sem zombarias, Pedro - alertou-o José.

- Não estou com zombarias, José. João, você disse que se incomoda com a existência de explicações para as questões que você se faz. Que bom. Está aí a maravilha da nossa existência.

- Estais zombando de mim e do José, né, ô, Diôgenes?!

- Não. Não. Não estou, não.

- Não, Pedro?! A maravilha da nossa existência é a ausência da existência de uma resposta, a resposta correta, que explique a nossa existência?

- Exatamente, João. É bem por aí. Eu digo, e quero dizer, que se Deus descer ao mundo dos homens e a todos dizer que é Deus, lhe pedirão os homens que Ele prove que é Ele Deus, e Lhe exigirão que Ele crie coisas, assim, num estalar de dedos, e do nada fazer, por exemplo, um passarinho. E Ele atendendo ao pedido, melhor, exigência, dá vida, a partir do nada, a um passarinho, que pode ser um pardal, ou um beija-flor, ou outro passarinho qualquer. E acreditarão os homens no que os olhos deles viram, ou irão eles se infligir suspeitas enervantes e alegar que o fenômeno que testemunharam foi uma obra de prestidigitação, a de um mágico, a de um ilusionista, e sairão a procurar por uma explicação, a que, sem saberem qual é, seja a correta, e assim que a obtiverem dirão que ela não explica o fenômeno que testemunharam.

- Afinal, Pedro, você acredita que Deus existe, ou não?

- Para dizer a verdade, João, a verdade verdadeira, eu não acredito, e nem deixo de acreditar, que Deus existe. Não sei se Deus existe, ou se Ele não existe. Não acredito na existência de Deus, e não acredito que Ele não existe. Se Ele existe eu não sei; e eu não sei se Ele não existe.

- Que confusão dos diabos, Pedro.

- Confusão infernal, José. E eu não tenho a pretensão de com as minhas palavras confundir ninguém além de mim mesmo. 'ta'í a beleza da nossa existência. Confundimo-nos com tal questão; infelizmente, há quem acredite que tem autoridade para impor suas crenças a todos os seres pensantes, sejam suas crenças quais forem, ou a que ensina que Deus existe, ou a que ensina que Deus não existe, ou outras quaisquer, que são infinitas, presumo, que a imaginação dos homens é capaz de conceber.

- Você não perde oportunidade, Pedro, de triturar o cérebro de quem se dispõe a ouvir o que você diz. Deus me livre. Em vez de me ajudar a pensar, você me confunde ainda mais.

- Eu não sei o que penso, João. E deixo a questão que você pôs em aberto. Quem sou eu para iluminar seja o que for! Não sou lâmpada, nem lanterna. Eu mal sei o que pensar a respeito da existência de Deus, ou de Sua não-existência, e você quer que eu ajude você a pensar?! Você ficou doido?! Eu penso o seguinte: acompanhem-me vocês dois: não sei se me farei entender por vocês, mas vamos lá: quem diz "Eu acredito que Deus existe." não prova, ao dizer tal frase, que Deus existe; apenas afirma que Ele existe; e afirmar que Deus existe não é o mesmo que provar que Ele existe. Pode uma pessoa que acredita que Deus existe provar, por A mais B, usando de um raciocínio lógico irretocável, que Deus existe; penso, todavia, que a conclusão, a de que Deus existe, do raciocínio que ela desenvolveu já se encontra no seu princípio, porque, consciente ou inconscientemente, ela, sendo crente em Deus, quer acreditar que Deus existe, e é o pontapé inicial do seu raciocínio uma premissa que a permite chegar à conclusão do seu agrado; e por mais sofisticado que seja o instrumento lógico que emprega ao pensar, ela não foge do comum estado de espírito humano, o de provar ser o certo o que ela quer que seja o certo. Todos somos assim, pois todos os seres humanos somos seres humanos. Embutido na premissa está a conclusão do raciocínio. Ou eu direi melhor se disser que a conclusão do raciocínio antecede a premissa, à premissa se antecipa, porque se quer chegar à conclusão que se deseja? Não sei. Sei, unicamente, que todo pensamento em cuja conclusão está a comprovação da existência de Deus é um exercício de fé, de crença, e mais de crença, de fé, do que de lógica, de um raciocínio impecável, este raciocínio lógico a ludibriar a pessoa que o usa, persuadindo-a que ela provou algo, algo, este, que, na verdade, não está provado, mas está em hipótese, é uma conjectura. O mesmo raciocínio eu uso para falar daquelas pessoas que juram de pé junto que Deus não existe, pessoas que, em última análise, acreditam na não-existência de Deus. Sem tirar nem pôr, os que acreditam na existência de Deus e os que acreditam na não-existência de Deus acreditam no que acreditam e não provam, os primeiros, que Deus existe, os segundos, que Deus não existe. Eu nunca vi uma pessoa que afirma, e afirma categoricamente, que Deus não existe provar que Deus não existe; mas já vi muitos ateus ter idéias preconcebidas acerca da crença na existência de Deus, e muitos, preconceituosos, a arvorarem-se intelectos superiores porque não se misturam, não se confundem, com os crentes na existência de Deus, que, pensam muitos ateus, são gente supersticiosa, de uma era bárbara, anterior à civilização, pré-científica, gente que ainda não abandonou culturas arcaicas, milenares, antiquadas, de gente quadrada. E provam que Deus não existe? Não. Revelam-se crentes, gente que crê na não-existência de Deus. São crédulos. Os que crêem em Deus não pedem por uma prova científica da existência de Deus, pois acreditam, e acredito que corretamente, que a crença na existência de Deus não é um artigo científico,e contentam-se com a, digo, e digo respeitosamente, ignorância acerca da existência de Deus, ignorância, saliento este ponto, científica. Eu nunca vi um crente em Deus viver atormentado com a inexistência de explicação científica para a existência de Deus. Eles intuem, eles, os crentes na existência de Deus, intuem que há mistérios que os humanos nunca desvendaremos, que há segredos que jamais aos humanos serão revelados, e não se atormentam com tal desconhecimento. E os que acreditam na não-existência de Deus, assim me parece, também não procuram por uma explicação científica, uma explicação científica que prove a inexistência de Deus, prova, esta, que, sabem, ou intuem, jamais encontrarão, e nunca a encontrarão porque, talvez, talvez, presumam que ela não exista. Ou, melhor, presumem, ou acreditam, as pessoas que acreditam na existência de Deus e as que acreditam na não-existência de Deus que as provas da existência de Deus existem, e as há em abundância, mas sendo falha a inteligência humana, jamais os humanos as apreenderemos, mas preferem declarar, com certa dosagem de intolerância, os primeiros, que Deus existe, sem dar as provas da existência d'Ele, os segundos, que Deus não existe. Ou, então, as pessoas que acreditam na existência de Deus e as pessoas que acreditam na não-existência de Deus sabem, ou presumem, que há provas, e infinitas, da não-existência de Deus, e...

- Resumo da ópera: cada cabeça, uma sentença.

- Exatamente, José. Eu me inclino ao ateismo. Não acredito que Deus existe; ao dizer que não acredito que Deus existe não estou a negar a existência de Deus, pois ao dizer "Não acredito que Deus existe.", eu apenas afirmo a minha crença. E o Pedro, que não vai nem pra lá, nem pra cá, não acredita que Deus existe, e nem que Deus não existe.

- Eu deixo a questão em aberto. Ouço com atenção, e respeitosamente, quem crê que Deus existe e quem não crê que Ele existe, ou, melhor, quem crê que Ele não existe, e não entro em brigas com ninguém por causa disso. Cada um com a sua crença. Que se respeitem as pessoas. O José acredita em Deus; o João, não; eu deixo a questão em aberto.

- Somos os três amigos há quanto tempo? Eu e o João, há uns quinze anos; eu e o Pedro, há uns doze anos...

- E eu e o João há uns doze, doze, quinze anos.

- E nos entendemos maravilhosamente bem.

- Não maravilhosamente bem, não é verdade, José?! Temos as nossas rusgas.

- E rugas, que se multiplicam exponencialmente, João, na sua cara.

- Você já se olhou no espelho, Pedro?

- Não briguem, crianças. Pedro, desculpe-se com João; e João, descul...

- Vá te catar, José.

- Vá ver se estou na esquina.

- Perdeu a noção do perigo, bróder!?

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Um conto

 O Homem que se Machucava Demais.


Não tinha Valério o porte de um portentoso e atemorizante guerreiro viking, nem o tipo escultural, apolíneo, de um herói helênico do tempo de Péricles; e tampouco o de um desgracioso, minúsculo, franzino pigmeu. Não era ele um varapau esquálido, risível e desengonçado, tampouco um gigante tourino, enxundioso, pesado; era um homem comum, de nariz comum, e comuns lhe eram os lábios, e o nariz, e as orelhas, e o queixo, e o rosto desguarnecido de barba e bigode, e a testa, e as mãos, e os dedos, enfim, era ele uma figura comum, esbelta, que já contava a idade de vinte e seis anos. Mas comum não lhe era a cabeleira frondosa, espessa, que lhe ataviava a cabeça, esta comum, e elevava-se do chão um metro e setenta centímetros de altura, aumentando-lhe a estatura em uns cinco centímetros. Invejavam-lhe a cabeleira, misto de juba leonina e crina equina, homens e mulheres, estas mais do que aqueles. Não era Valério um portento de força capaz de erguer uma tora de madeira de cem quilos e carregá-la por um quilômetro, e tampouco um fracote desguarnecido de músculos que mal conseguia erguer uma pena de galinha-d'angola. Extrovertido, e brincalhão, e espirituoso, de índole cativante, que alegrava o mais casmurro dos homens e a mais resmungona das mulheres, de todos a extrair, e sem esforço, sorrisos, risos e gargalhadas, estava sempre a surpreender com suas histórias seus familiares e parentes, e seus amigos e conhecidos, e seus colegas de trabalho. Casado, havia um ano e dois meses, com Jacqueline - que fazia questão de inscrer, em seu nome, o "c" entre o "a" e o "q" - bonita moça de vinte e dois anos, pequena, de um corpo frágil, quebradiço, dir-se-ia de vidro - tal observação dá a entender ao leitor que era a consorte de Valério mulher enfermiça. Reconsideramos, portanto, as palavras que usamos para descrevê-la, e com estas palavras a apresentamos: Era Jacqueline - e não nos esqueçamos do "c" entre o "a" e o "q" - pequena, magra, de cristal, doce, meiga, de pele acetinada, sedosa, de sorriso encantador; um modelo perfeito de uma ninfa, uma sílfide, uma naiade; era ela uma sereia; seus cabelos, atavios que lhe sublimava a beleza; seus olhos, lábios, sobrancelhas, cílios, nariz, orelhas, queixo, maçãs-do-rosto, cabelos, e mãos, e pés, incomuns, raros, dir-se-ia fantásticos, irreais. Mas eram reais, verdadeiros. E hipnotizaram Valério, um dos muitos pretendentes dela; e ela, de todos os homens que a requestavam, decidiu com ele unir-se em cerimônias matrimoniais civil e religiosa, porque não lhe resistia às espirituosidade e graça autênticas, que muito a faziam rir. E invejavam Valério os amigos dele, os solteiros, à procura cada um deles de sua cara-metade, e os casados, que sempre que comparavam a figura de Jacqueline cada qual com a de sua esposa, suspiravam, uns, trangredindo o décimo mandamento, a lamentarem haver um dia decidido vestirem uma aliança no dedo anelar da mão esquerda, e diante de um padre, ou, simplesmente, de um juiz de paz.

Tem princípio a nossa história num sábado ensolarado do mês de Novembro, à tarde, segundos antes do início do crepúsculo. Conta a nossa história três capítulos da vida de seu herói, o já apresentado Valério, o felizardo marido de Jacqueline. O primeiro passa-se em um bar, o segundo em uma casa, e o terceiro em um pronto-socorro. No desejo de não trocarmos os pés pelas mãos, não nos anteciparmos aos eventos, não acelerarmos a narrativa sonegando informações ao leitor, iremos por partes, num ritmo lento, mas não demasiadamente lento, com as minúcias que achamos apropriadas.

E vamos ao bar. E não a um bar qualquer o Valério foi. Ele foi ao bar do Evandro Saraiva, o popular, naquele bairro, e nas adjacências, descendente de nativos de alguma colônia portuguesa na África e de silvícolas ameríndios que escaparam das mãos de bugreiros, Tupi Guaraná, bar distante de sua casa uns duzentos metros, no quarteirão vizinho, à direita, na esquina das ruas Damião de Góes e Manuel Antonio de Almeida. E foi a passos lentos, como que a calcular-lhes os centímetros que cada um deles cobria, e a cronometrar seus movimentos, em cada passo a gastar o mesmo tanto de segundos, a cabeça ligeiramente abaixada, a sorrir, antecipando-se à cena que, desejava, criaria, uma peça, digamos, que pretendia pregar em quem no bar estivesse. Carregava, no braço direito, gesso, que o cobria quase que por inteiro. Com os dedos da mão esquerda coçou o peito, metros antes de chegar ao seu destino; e assim que sentiu algo lhe tocando a cabeça, passou-lhe a mão esquerda ao mesmo tempo que se deteve, e olhou para cima, à procura não sabia do que. Não encontrou o que o atingira; abaixou a cabeça, olhou ao redor, esquadrinhou o chão, e viu galhos e folhas, e concluiu que algum galho, pequeno, lhe acertara a cabeça. E seguiu rumo ao bar, onde chegou pouco depois. E mal transpusera o enquadramento da porta, anunciou-se. Assim que pôs os pés no território do Evandro Saraiva, passou ao seu lado, quase lhe tocando ombro com ombro, um homem de altura que equivalia à sua, gordo, calvo, trajado com uma bermuda, que lhe estava colada às coxas, e uma camisa, que lhe deixava à mostra a metade inferior da barriga proeminente. Saudou Evandro e os dois outros homens que com ele palestravam, ao balcão, todos animados, a se pronunciarem em alto e bom som, e a gargalharem, então perdidos numa animada confabulação acerca de futebol, todos a enodoarem a progenitora do árbitro da partida. Voltaram-lhe os três a atenção, um deles, naquele momento, a levar à boca o copo americano com cerveja alemã. E mal o viram, intrigaram-se, a atenção deles a convergirem-lhe para o gesso que lhe cobria o braço direito. Eram os dois amigos-de-copo de Evandro Saraiva, um, baixote, moreno acobreado, homem de vida difícil, via-se, de rochosa musculatura, semi-calvo, Renato, também chamado, pelos amigos, Galo de Briga, o outro, robusto, moreno, de estatura mediana, de cabelos encaracolados, preto-foscos, o Lobato, assim alcunhado devido às suas espessas sobrancelhas, e cujo nome de batismo era Vicente João Serafim Ricardo.

Antecipando-se aos seus dois amigos, Evandro, curioso, perguntou, zombeteiro, a Valério:

- Quebrou a patinha, donzela?!

Riram Vicente e Renato. E Vicente espetou, com um palito-de-dentes, que tirara de dentro de um copo com cerveja até a metade, um ovo de codorna cozido, e levou-o à boca.

Valério exibiu, então, aos três homens, o braço direito coberto com gesso, com ar triunfante, como se lhes exibisse um troféu arduamente conquistado, e antes de responder à pergunta que lhe fôra feita, Evandro fez-lhe segunda pergunta:

- O que houve, Valério?!

- Ouço o que me chega aos ouvidos. - respondeu-lhe o nosso herói. - Não sou surdo, ô, cacique txucarrapai.

Gargalhou Renato, visivelmente ludibriado pela loira gelada que namorava há alguns minutos. E Vicente sorriu, a inspirarem-lhe o sorriso a pergunta que Evandro fizera a Valério, a resposta que este lhe dera e a gargalhada de Renato.

- Vá se danar, paspalho - replicou Evandro.

- Oi, Galo - saudou Valério a Renato, que foi uns dois passos em sua direção, e deu-lhe três tapas no ombro direito, e passeou-lhe a mão pelos cabelos, acariciando-os, ao mesmo tempo que lhe dizia:

- 'tá luzidio, Valérinho. De barriga cheia. Que vida mansa, marajá.

- Luzidio, eu, garnizé?! - observou Valério. - Veja suas penas. Brilham ao sol. Penas de ouro e de prata. Que exuberância.

- Apanhou da sua mulher? - perguntou Vicente ao recém-chegado.

- Antes fosse - respondeu-lhe Valério. - Dela eu receberia, e com muito gosto, a pancadas.

- Até eu - afirmou Renato, sorrindo tolamente. - A sua muié é uma tetéia.

- Não me desrespeite, franguinho. - replicou Valério, num tom jocoso. - Olhe o mandamento.

- Respeite a mulher do Valério, Galo de Briga. - reprovou Evandro a atitude de Renato.

- Não esquenta, Valérinho - desculpou-se Renato. - Fêmea de amigo meu para mim é macho.

Valério sorriu ao vê-lo pendular-se para a direita e para a esquerda.

- Vá beijocar a loirinha, galinho. - sugeriu-lhe Valério, que, voltando-se para Evandro, perguntou-lhe: - Quantas geladas o passarinho já bebeu?

Antes que Evandro lhe respondesse à pergunta, entrou no bar, com um jornal dobrado sob a axila esquerda, um magricela branco, de cabelo curto, penteado ao meio, trajado com calça e camisa machados de tinta, Gabriel, que, tão logo viu Valério, perguntou-lhe:

- O que houve, Valério?

- Darei a você, Pé-de-Pato - respondeu-lhe Valério -, a mesma resposta que dei para o cacique Tupi Guaraná: Ouço o que me chega aos ouvidos.

- Conte-nos o que aconteceu, zé-mané - solicitou-lhe Gabriel.

- A senhora muié dele - antecipou-se Renato a Valério - sentou a vassoura no lombo dele, sugando-lhe um litro de sangue, e partindo-lhe o braço em três partes, a do meio ele a jogou pro cachorro do Tupi.

- Cacique, por gentileza - disse Valério -, não dê mais nenhuma gota de malte para a criança. - E voltando-se para Renato, aconselhou-o: - Ô, hobbit, ponha o copo, com a boca para baixo, sobre o balcão. E não ponha mais cerveja na boca, ou vai fazer xixi na cama. - E voltando-se para Evandro: - Mestre morubixaba, sábio indígena, discípulo do mestre Yoda, telefone para a mãe do pouca-sombra, e diga-lhe que venha, e já, buscar o filhotinho, que acha que já é galo, mas que ainda não saiu do ovo.

Renato divertiu-se com o que ouviu. Vicente caiu na gargalhada. E Evandro e Gabriel riram - e este pediu àquele cerveja, e ele atendeu-o prontamente.

Assim que restabeleceram conversa, Valério respondeu à pergunta que Gabriel lhe fizera:

- O que me aconteceu!? Vocês querem saber o que me aconteceu!? Contarei o que me sucedeu, tim-tim por tim-tim. Apresentarei aos senhores todas, e mais algumas, minúscias, pormenorizadamente, com detalhes incalculáveis, num relato repleto de emoção, drama, suspense, mistério, surrealista e parnasiano, e barroco e romântico, a minha enocionante aventura, cujo encerramento, que não me foi do agrado, é cômico, quase trágico, e dolorido, muito dolorido, imensamente dolorido. Estava eu, belo e formoso, a tirar da geladeira a caixa com leite, após dela tirar um pote de plástico cheio de gelatina; não era um pote, digamos a verdade; era um prato de plástico; na verdade, não era um prato, nem um pote; mas era de plástico; era uma vasilha de bordas maiores do que as de um prato e menores do que as de um pote. Mas era de plástico, e de plástico fino, frágil.

- Desembucha, matraca. Você fala mais do que a nega do leite - reprovou-o Evandro Saraiva.

- Silêncio, majestoso pajé dos cataporas - retrucou Valério.- Vamos, passo a passo, a narrar a história. Continuemos, caros aristocratas bebedores do mais puro malte: Pus, sobre a mesa, o prato, ou pote, ou vasilha, ou tapoer, sei lá eu o que era aquela porcaria, com gelatina, e, em seguida, a caixa com leite; e assim que fechei a geladeira, de repente, mais que de repente, na velocidade de um raio, entrou, e logo saiu, na cozinha, um pardal, que me atingiu, com seus pés, a cabeça, assustando-me, e desequilibrei-me, e bati com o cotovelo na mesa, e derrubei, com a mão, não me lembro se com a direita, se com a esquerda, a caixa com leite, e leite derramou-se pela mesa e pelo chão, e esparramou-se, e no meu esforço de recuperar o equilíbrio, estiquei-me, desengonçadamente, e pisei na poça de leite, e pousei a mão, na mesa, onde havia leite derramado, e escorregaram-se-me, levando-me para o chão, violentamente, os pés e as mãos, e cai-me sentado. Doeu-me as almofadas. E tratei de me levantar; e assim que me pus de pé, furibundo, enraivecido, descarreguei um soco, e bem dado, na gelatina. E quebrou-se-me o braço. Vejam, senhores cidadãos do reino tupi: meu braço engessado, obra de um tombo, que um pardal me presenteou.

- E do que era tal gelatina? - perguntou-lhe Evandro, intrigado. - De pedra?!

- Não, Saraiva, não. - respondeu-lhe Valério. - Era de limão.

- De limão azedo? - perguntou-lhe Gabriel, divertindo-se com a situação. - Eu não sabia que com limão azedo se faz gelatina tão dura.

- Que gelatina dura, o que, Pé-de-Pato - falou-lhe, Renato, pronunciando, desajeitadamente, as palavras, silabando-as, exibindo dificuldade para coordenar os pensamentos, que lhe saíam aos trancos. - Você não conhece o Valérinho, não?! Ele é uma flor. Quebrou a patinha de moça. Bilu Tetéia.

- O Valério é de porcelana - comentou Vicente, dobrando-se numa gargalhada convulsiva.

- É uma rosa - disse Renato, aproximando-se de Valério, e passeando-lhe as costas da mão esquerda no rosto e deslizando-lhe a mão pelos cabelos.

- Podem rir - disse Valério, num tom fingidamente pernóstico e irritado em meio às gargalhadas de seus três interlocutores. - Gargalhem. Gargalhem. Se vocês conhecessem o final da minha aventura, que eu ainda não contei do princípio ao fim, não iriam rir, nem gargalhar, jamais, nunca. Eu poderia me recusar a prosseguir com a narração; não o farei, todavia, entretanto, porém, no entanto; embora os senhores bebedores de malte, glutões inveterados, não mereçam de mim ouvir nem mais uma palavra, eu, ainda assim, me dignarei a contar aos senhores o que se me sucedeu. Se porventura um raio cair-me sobre a cabeça, ainda assim eu narrarei o que me comprometi a narrar, e com todos os detalhes indispensáveis, queiram os senhores, ou não, mereçam, ou não, os senhores de mim ouvir tão emocionante relato.

- Deixa de lero-lero, e desembucha - reprovou-o Renato.

- Dê-me silêncio, galinho. - pediu-lhe Valério. - Vá cacarejar em outra freguesia. Antes de mais nada, digo: são de aço, e não de porcelana, meus braços. Mas, vejam. Melhor: escutem, escutem atentamente: eu soquei, e com um soco bem dado, daqueles bem dados, num supetão, a gelatina, esmagando-a, pulverizando-a, esmigalhando-a. E fez-se ouvir o barulho de algo se quebrando; e não era o algo a gelatina; era o meu braço. Ora, soquei a gelatina; e infelizmente, embaixo dela estava a mesa, e não mesa qualquer, de compensado; é a mesa de madeira nobre, jacarandá, herança de meus avós. O osso aqui do braço... Como se chama?! Fêmur?! Não sei. Eu nunca fui bom em poesia. Partiu-se-me o osso em dois. Foi um deus-nos-acuda! A Jacqueline ouviu-me o berro, e correu acudir-me. E num pulo chegamos ao Pronto Socorro. E logo atenderam-me os enfermeiros. E aqui estou, na companhia de três de meus amigos, quebrado, mas inteiro,a bebericar uma geladinha.

E estrondejaram, altissonantes, as gargalhadas.

Entraram no bar outros homens. E Valério logo inteirou-os do que lhe sucedera. Narrou a história, com diferenças insignificantes, quatro vezes, Renato a interrompê-lo a curtos intervalos, infalivelmente a criar cenas hilárias e a embaraçar a todos, em uma ocasião, sendo inconveniente, a ouvir uma reprimenda de Evandro Saraiva, que não admitia em seu território toda e qualquer atitude, e, consciente de seu papel desrespeitoso, desculpou-se com todos, sinceramente constrangido, apesar de sua ligeira ebriez.

Seguiu, animada, a conversa, até as vinte e duas horas.

Encerrado o primeiro capítulo da nossa história, nosso herói, Valério já há um bom tempo recuperado, removido de seu braço direito o gesso - que, um dia antes de o médico lho tirar, estava inteiramente coberto com inúmeras garatujas, e desenhos, uns exemplarmente bem-acabados, e uma pintura de um êmulo de Michelângelo, uma réplica de um afresco que embeleza a Capela Sistina, a obra-prima do admirador do gênio renacentista ladeava a assinatura, cuidadosamente trabalhada, com esmero incomum, de Jacqueline -, damos as primeiras palavras do segundo capítulo da aventura que acompanhamos atentamente.

Transcorreram-se quatro meses do dia que Valério, no bar do Evandro Saraiva, o Tupi Guaraná, anunciou o seu acidente. Estamos, agora, no mês de Março, em um sábado quente e abafado, às dezoito horas.

Valério e Jacqueline, ambos asseados, perfumados, havia poucos minutos banhados na água quente de um chuveiro, retiraram-se de carro, ela ao volante, ele, no banco posterior à direita dela, desajeitado devido ao gesso que lhe cobria a perna direita abaixo do joelho. Para entrar no carro, a amparar-se em muleta de madeira, marrom, manchada de preto em oito pontos, auxiliara-o Jacqueline, que o ajudara a acomodar-se no banco e a livrar-se da muleta. Incomodava-se Valério, que resmungava de tempos em tempos, sempre a adicionar às queixas comentários jocosos, esforçando-se para ver graça em sua situação. Jacqueline trajava um vestido, discretamente decotado, vermelho - que lhe respeitava os contornos do corpo -, as orlas a lhe descerem até os tornozelos, e as alças, finas, a sustentá-lo. Admirou-lhe a beleza e formosura Valério, que lhe disse que ela não tinha que se embelezar tanto, pintar, com tanto cuidado, com esmalte vermelho fosco, as unhas, e tampouco fazer uso de tanto capricho no penteado dos cabelos e dos cílios e das sobrancelhas, pois ela era naturalmente bela, divina, e louvou-lhe a beleza. Jacqueline, ao mesmo tempo que dele acolheu de peito aberto os elogios, pediu-lhe que não tivesse um ataque de ciúmes tal qual o que dera uma semana antes, na festa de casamento de um casal de amigos. Valério careteou.

Iriam à casa dos avós maternos de Jacqueline, Joaquim e Isabel, para a efeméride: septuagésimo quarto aniversário natalício do mais antigo ancestral vivo de Jacqueline, o vovô Joaquim, ancião pacato, de poucas, quase nenhumas, palavras, que, havia dois meses, na mesa de cirúrgias de um hospital, foi retalhado por um cirurgião, que lhe instalara duas pontes-de-safena, às pressas, após ele sofrer uma parada cardíaca que quase lhe roubara a vida.

Na casa de Joaquim e Isabel chegaram Valério e Jacqueline vinte minutos após retirarem-se de sua casa, ela a dirigir, com cuidado extremo, o carro, por ruas esburacadas, e mal-iluminadas, algumas envoltas pela escuridão, pois estavam apagadas as lâmpadas dos postes, e ele a reclamar do sacolejar do carro, movimentos abruptos que lhe provocavam dores na perna envolta em gesso.

E retiraram-se do carro. Mal havia Valério pousado a perna esquerda na calçada, escorando-se, desajeitadamente, na muleta, e Jacqueline a ladeá-lo, e de bem perto, aproximaram-se dele, curiosos, animados, eufóricos, sorridentes, Bianca e Bruno, gêmeos, de cinco anos, sobrinhos de Jacqueline, ele vestido com uma bermuda azul e uma camisa verde, e nos pés tênis pretos amarrados com cadarços brancos, e cabelos desmanchados, ela, com uma calça amarela e camisa branca, carregando, nos pés sandálias, e trazendo, presos, com uma presilha de plástico, os cabelos longos.

E Bianca, que se antecipara a Bruno um passo, abriu os braços para abraçar Valério, que se curvou, esforçando-se para não deixar seu rosto transparecer o desconforto que tal gesto lhe inspirara, para a frente, e ofereceu-lhe o rosto direito, que ela osculou, carinhosamente, ao mesmo tempo que Jacqueline agachava-se, e punha-se de cócoras, e abraçava e beijava Bruno, que lhe saltara aos braços num pulo prodigioso quase vindo a derrubá-la para trás. E saudaram-se com abraços e beijos Jacqueline e Bianca, e com um beijo Valério e Bruno. E assim que encerraram as saudaçoes calorosas, os beijos, os abraços,e Jacqueline pôs-se de pé, Bruno voltou-se para Valério e, apontando-lhe a muleta,perguntou-lhe:

- O que é isso, tio? É uma espingarda?

E Bianca chamou a atenção de seu irmão:

- Não, né, Bruno. O tio não é soldado.

- Marcha soldado, cabeça de papel; se não marchar direito, vai preso no quartel. - cantarolou Bruno. - Não é assim, tio, que soldado canta, e canta e marcha?

- É - respondeu-lhe Valério. - É assim que soldado canta, encanta, e marcha.

- Mas o que é isso? - perguntou-lhe Bianca, apontando a muleta.

E Valério respondeu-lhe:

- O meu estepe.

- Estepe!? - indagou, curiosa, a  menina.

- É uma bengala - respondeu Valério, escondendo para si o sorriso que lhe animava o espírito.

- Bengala?! - indagou-lhe Bruno, intrigado, cismado.

- Não é bengala, não - observou Bianca, séria. - Não é um pão. Bengala é pão. Isso - e apontou para a muleta - não é pão. É madeira, madeira de árvore.

- É tábua - corrigiu-a Bruno.

- É madeira - replicou Bianca.

- Não é madeira, não - retrucou Bruno. - É tábua. Tábua é feito de árvore.

- Madeira também é feito de árvore, né, bobo!? - corrigiu-o Bianca, mostrando-lhe a língua.

- Bobona - xingou-a Bruno, que logo voltou-se para Valério: - Tio, isso - e apontou a muleta - não é estepe, não. Não é, não. Isso - e mais uma vez apontou a muleta - não é um pneu de carro.

Valério e Jacqueline não conseguiram controlar o riso. Jacqueline exibiu uma fileira de dentes brilhantes de tão brancos, perfeitos, lácteos. E Valério disse para as duas crianças:

- Vocês me pegaram, danadinhos. Isto - e indicou-lhes a muleta - não é estepe, nem bengala. É um cajado mágico de um bruxo feiticeiro do castelo do rei Príncipe Leão, vossa majestade do reino encantado. Muleta é o nome deste cajado; tem o poder de me amparar; se eu não o deixo, assim, encaixado, aqui, embaixo do sovaco, caio de bumbum no chão. Ai. Ai. Ai - fez que havia caído.

A representação dramática de Valério arrancou ondas de gargalhadas de Bruno e Bianca.

Aproximou-se deles, Laura, irmã de Jacqueline, de dezessete anos, de cabelos escorridos, tão brilhantes, que chamaram a atenção de sua irmã, que não se conteve ao elogiá-la. Beijaram-se as irmãs no rosto, ambas encostando-se os rostos, sem tocarem neles os lábios, movendo-os como se se osculassem. E Jacqueline avaliou os cabelos de Laura, pegando-os, cuidadosa e carinhosamente, e deixando-os escorrerem, suavemente, por entre os dedos das mãos.

Enquanto as irmãs conversavam, e admiravam-se, entretinham-se, numa palestra animada, Bruno, Bianca, e Valério, aqueles concentrados nas palavras deste.

- O senhor está com a perna quebrada, né,tio? - perguntou Bianca a Valério.

E antes que Valério respondesse, Bruno indagou-lhe, ao mesmo tempo que coçava o nariz e ajeitava a bermuda:

- Tio, por que o senhor quebrou a perna?

- Não foi de propósito, acredite - respondeu-lhe Valério. - Sabem o que me aconteceu? Não sabem, é claro. Vou contar para vocês o que houve. Eu estava, na varanda da minha casa, que é, também, a casa da tia Jacqueline, que manda quando não estou lá, a lavar o carro, um calhambeque aristocrático, e não uma lata-velha caindo aos pedaços, com água e sabão, mais água do que sabão, e muito sabão. E eu a passar a esponja com água e sabão no carro, e no carro a esguichar água para dele remover o sabão, até o carro brilhar de tão limpo, a assumir a figura de uma pedra preciosa. Brilhava que era uma beleza o meu carro. E eu, assim que olhei perto da roda de trás, não me lembro se do lado direito, se do esquerdo, vi uma gigantesca montanha de espuma.

- Bem grande? - perguntou-lhe, curiosa, Bianca.

- Enorme. Imensa. - respondeu Valério. - Enorme de tão grande. Imensa de tão enorme. Grandiosa. Maior do que todas as montanhas que existe em todo o mundo.

- E em toda a galáxia - completou Bruno.

- Sim. - confirmou Valério. - Em toda a galáxia. E até o infinito, e além. E lá estava a montanha de espuma, bem diante de meus olhos. E eu, não sei porquê, usando todo o poder intelectual da minha massa cinzenta, o miolo que recheia minha cabeça de homem sábio, decidi, para desfazê-la, dar-lhe um pontapé, e bem dado. E dei-lhe o chute. E quebrou-se-me a perna. Ai. Ai. Ai. Doeram-me pé e perna. Era tanta, mas tanta, a dor, que, não me aguentando em pé, fui parar, no chão, a berrar igual neném que apanha no bumbum.

- Mas, tio, espuma de sabão nem é dura - observou Bruno.

- É verdade - comentou Valério. Espuma de sabão não é dura. A espuma de sabão, meu querido sobrinho, não é dura, eu sei, você sabe, tu sabes, ele sabe, e ela também, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem, e elas também, mas a roda, roda de metal, de adamantium, que a espuma de sabão escondia, é. É duríssima. Mais dura do que a minha cabeça. Duríssima. Que dureza! Doeram-me à beça pé e perna. Chorei, até, de dor, e dor bem doída. Não sei qual fenômeno se me envolveu, que, além de quebrar ossos dos dedos do pé, quebrei o da perna direita, a... Tíbia?! Não sei. É assim que se diz?! Sei lá. Geometria não é o meu forte. Foram pras cucuias os ossos.

As duas crianças gargalharam. Durante a festa, elas, mais do que Valério e Jacqueline, encarregaram-se de espalhar a história para todos os presentes na casa de Joaquim e Isabel.

Valério ainda não havia encerrado a sua narrativa, da casa dos avós de Jacqueline saíram Joaquim, um irmão deste, Pedro, e uma filha deste, Maristela, que ficaram a ouvir as derradeiras palavras do relato de Valério, que, assim que o encerrou, saudou-os e abraçou-os. E trataram todos de entrar na casa do aniversariante.

Encerrado o segundo capítulo da aventura de Valério, chegamos, agora, ao terceiro capítulo, que é o último que aqui relatamos, para, ao seu final, darmos fim à nossa história, à qual nos dedicamos, com agrado e boa-vontade, durante alguns minutos de nossa curta existência. E este terceiro e derradeiro capítulo, já dissemos, passa-se em um pronto-socorro.

Estamos, agora, no mês de Junho, na manhã, um pouco antes das sete horas, de uma quarta-feira de frio de trincar ossos, de fazer toda pessoa bater os dentes, uma espessa neblina a cobrir toda a cidade, impedindo as pessoas de verem o que havia a um palmo à frente do nariz.

No saguão de entrada do Pronto Socorro Municipal, estava, sentado numa cadeira-de-rodas, Valério, e a empurrá-la Sócrates, seu irmão. Detiveram-se à porta, à espera do carro que os conduziria à casa de Valério. Trazia o nosso herói uma atadura na cabeça, os dois olhos quase invisíveis, o esquerdo oculto sob espessa camada de pele preta-arroxeada, circundados por hematomas, o nariz quebrado, rubro, coberto com uma gase e esparadrapo, o rosto avermelhado, o braço direito e a perna esquerda engessados, e a perna direita inchada tantos eram os machucados que a cobriam. A aparência de Valério, de dar arrepios. Mal conseguia falar com seu irmão; a voz arrastava-se-lhe pelo esôfago, e nos dentes, encontrando dificuldades, praticamente intransponíveis, para lhe saírem da boca. Sempre que desejava falar ao seu irmão, este curvava-se, ligeiramente, para a frente, e punha-lhe a orelha à boca.

Estavam, à entrada do pronto socorro havia uns vinte minutos, quando abordou-o Denilson, amigo de Valério desde o pré-primário; ambos não se viam desde o casamento de Valério com Jacqueline. Assim que se aproximou deles, Denilson exclamou, surpreso, e sem esboçar vontade de ocultar sua surpresa:

- Ó mai góde!

Voltaram-se para ele Valério, e Sócrates, que lhe estendeu a mão direita, para apertar-lhe a direita, que ele lhe oferecia. E Denilson, encostando-se em Sócrates, e saudando-o com um bom-dia, e dando-lhe tapas fraternais nas costas, perguntou a Valério:

- O que aconteceu com você, Valério?! Atropelamento?! O que aconteceu? Meu Deus, Valério. Você está um bagaço. Um caminhão passou por cima de você?

Valério não respondeu; esboçou um sorriso acanhado, que se assemelhava ao esgar repulsivo de uma quimera fabulosa, monstruosa, mitológica.

Esperou Denilson pela resposta, mas obteve de Valério apenas silêncio e um olhar desaprovador. Diante de tal cena, Sócrates informou a Denilson que Valério mal podia falar, e pediu-lhe que dele se aproximasse. Denilson, então, curvou-se, pousou as mãos nos braços da cadeira-de-rodas, e perguntou a Valério:

- Um caminhão passou por cima de você? Ou foi um trem?

- Antes fosse - respondeu-lhe Valério, ciciando. - Antes fosse, Nil. Mas o veículo que me esmagou é maior, e mil vezes mais destruidor.

- Diga-me o que aconteceu - pediu-lhe Denilson, sua curiosidade atiçada pelas palavras enigmáticas de seu amigo. - Conte-me a história do começo ao fim.

- Nos mínimos detalhes? - perguntou-lhe Valério, esboçando um sorriso grotesco.

- Sim - respondeu Denilson. - Nos mínimos detalhes, e nos máximos, também, se os houver. Não me deixe de falar todos os pormenores. Estou curioso. Nunca vi você assim; 'tá parecendo um pântano de tão disforme. Não sei que idéia eu quis expressar com tal observação, mas tudo bem. Esqueça o que eu disse, e conte-me o que se deu contigo.

- Eu dei um tapa na cara da Jacqueline, a minha querida esposa. - respondeu Valério, com dificuldade, as palavras mal lhe saindo da boca, e obrigado a fazer curtos intervalos entre cada uma das palavras que dissera e a repetir as mais extensas.

- Quê?! - surpreendeu-se Denilson com a revelação. - Ora, Valério. Não vá me dizer que a Jacqueline fez de você um bagaço. Conte-me outra, que esta não colou. A Jacqueline, tão pequena, tão frágil, tão fraquinha, fez de você saco de pancadas?! Não acredito.

- Espere, Nil - pediu-lhe Valério, sussurrando,paciência. - Não é o que você pensa. Não se precipite. Ouça-me: Discutia-mos eu e a Jacqueline. Mais ela comigo do que eu com ela. Íamos a berrar, a xingar um o outro, não me lembro porquê, e ela me disse não me lembro o que. Não me lembro o que ela me disse. Não me lembro. Dói-me a cabeça. Ela me disse algo que me tirou do sério, e do sério eu saindo, melhor, eu sendo tirado, perdi a cabeça, a compostura, a decência; e sem pensar duas vezes, dei-lhe um tapa, de supetão, na cara, com a mão direita; a direita, sabe? a destra. Foi um tapa bem dado. E a Jacqueline levou a mão ao rosto, e olhou-me com aquele olhar, sabe? de raiva, de raiva furiosa, de fúria raivosa. E entendi, então, ao fitá-la, que ela não iria levar desaforo para casa; aliás, estávamos em casa. E ela não permitiria que o desaforo ficasse lá dentro. Denilson, eu não sei, juro, no que eu pensava, naquele momento. Eu não pensava por mim. Eu não me responsabilizava pelos meus atos, mas me responsabilizaram por eles.

Todo o relato reproduzido no parágrafo anterior, Valério o apresentou num tempo que equivalia ao triplo do que gastaria se estivesse de plena posse de seus pulmões, esôfago e boca. Embora não pronunciasse corretamente as palavras e no volume adequado para se fazer ouvir pelo seu interlocutor, fez-se por ele se entender.

- E sua esposa, Valério - indagou-lhe Denilson -, aquela mulher tão frágil, tão meiga, deu uma sova em você?! E você quer que eu acredite nesta patranha?! Que a Jacqueline tem unhas de leoa, eu sei; que ela é brava, eu também sei. Ela herdou o temperamento sanguíneo do pai dela, aquele homem abrutalhado, fruto da miscigenação de nórdicos, bretões, russos, mongóis e visigodos. Até hoje eu não entendi como de um homem tão selvagem e estúpido e chucro nasceu mulher tão meiga e bela. Juro que não entendo. E olha que ela tem os olhos e o nariz dele.

- Não, Denilson - reprovou-o Valério, falando com a mesma dificuldade que vinha enfrentando até então. - Não é o que você está pensando. A Jacqueline é inocente. Não é ela a personagem mais importante da história. Não foi ela, é claro, que me moeu. Foi o irmão dela. Lembra-se dele?! O David?! David, aquele grandalhão, aquele brutamontes, aquele bárbaro da Ciméria. Homenzarrão de três metros de altura e dois de largura. Davi pequeno é só o da Bíblia. O David, meu antagonista, é um dos monstros da mitologia. De qual mitologia, não sei. Mas que ele é um monstro, é. Um monstro boxeador, lutador de muay-tai, de karatê, e de não sei quais outras, umas cinco ou seis, artes marciais. Coisas de marciano. Reconheço, Nil: o David é um bom homem. E é um ótimo irmão, ninguém há de negar. E é meu cunhado. Meu cunhado favorito. Ai! Dói-me o corpo; dói-me todo o corpo. Dos pés à cabeça. Até as unhas. Mas só dói quando eu respiro.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Notas

 O Nome da filha de Cristiano Ronaldo. Linguagem. Filmes. Guerra na Ucrânia. Notas breves.


O nome da filha caçula do futebolista português Cristiano Ronaldo, Esmeralda, inspirou ao escritor Deonísio da Silva comentários curiosos, tratando da origem persa do nome e evocando o poeta brasileiro Olavo Bilac.


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Sob o título "Existem Níveis no Uso da Língua?", publicado, no Facebook, dia 8 de Maio de 2.022, na página Língua e Tradição, Fernando Pestana resume um pensamento de Eugenio Coseriu, que entende que é a linguagem literária, e não a científica, a linguagem por excelência, pois ela explora em sua plenitude a jazida que é a linguagem humana, tão rica, tão vasta.


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Li, recentemente, sete textos, não sei se devo dizer resenhas, ou simplesmente comentários despretensiosos, acerca de filmes, um de autoria de Neto Curvina, um de Paulo Cursino, e cinco de Vincent Sesering. Considerarei o dos dois primeiros, textos, e não artigos, e tampouco resenhas, e ambos os textos publicados, no Facebook, nas páginas de seus respectivos autores, e os do terceiro, resenhas, publicadas, todas as cinco, no site Coquetel Kuleshov. Todos os sete textos são excelentes, e revelam de seus autores fina sensibilidade, e argúcia, para captar detalhes que de quase todos passam despercebidos. O de Neto Curvina é o tema o novo filme que tem seu personagem o mais famoso herói do escritor Ian Fleming, "007 - Sem Tempo para Morrer."; o de Paulo Cursino comenta um filme nórdico, O Homem do Norte, do qual vi um trailer, que me prendeu a atenção e despertou-me a curiosidade e inspirou-me o desejo de assisti-lo. Diz o autor que representa o filme a figura bárbara, selvagem do herói, não se inibindo em apresentá-lo sujo, em aspecto repulsivo. E as cinco resenhas de autoria de Vincent Sesering, todas publicadas neste ano de 2.022, todas ótimas, são: do mês de Março, "Batman, Matt Reeves, 2022.", publicado no dia 8; "A Trilogia Bourne, Doug Liman, Paul Geengrass, 2002, 2004, 2007.", no dia 16; "Batman vs Superman: a origem da Justiça, Zack Snyder, 2016.", no dia 3; de Abril, "Medida Provisória, Lázaro Ramos, 2022.", publicado no dia 27; e, de Maio, "Narciso Negro, Michael Powell & Emeric Pressburger, 1947.", publicado no dia 2.


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Emmanuel Macron, presidente francês, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, pedem cessar-fogo na Ucrânia. E Lloyd Austin, secretário de defesa dos Estados Unidos da América, e o ministro da defesa da Rússia, Sergey Shoigu, reúnem-se, e o representante americano pediu o imediato cessar-fogo.

Aqui, detenho-me para escrever algumas, poucas, observações, acerca das notícias que me chegam aos olhos. Desde o início da conflagração deflagrada pela Rússia há um pouco mais de dois meses que a OTAN planejou, milimetricamente, nos mínimos detalhes, a guerra na Ucrânia, guerra por procuração, e de longa duração, atraindo Vladimir Putin para uma armadilha, na qual ele caiu como um patinho, uma armadilha primorosamente orquestrada, para desgastá-lo, enfraquecer a economia russa e gerar descontentamento nos oligarcas russos, que cortariam a cabeça do ex-espião da KGB. E agora vêm o presidente da França e o secretário de defesa dos Estados Unidos, num curto intervalo de tempo, pedirem pelo fim das hostilidades. Algo não me cheira bem. É só jogo de cena, ou a OTAN deu um tiro no próprio pé, perdeu o controle da situação, as coisas, degringolando-se, estão indo de mal a pior? O que a imprensa não nos conta? O Vladimir Putin já pode dizer: "Não contaram com a minha astúcia.", ou ainda é cedo? Há dois meses os ocidentais - entenda-se: OTAN - precipitaram-se, e não foram tão astuciosos, como a mídia dava a entender? Presumia-se, então, que a Europa (melhor, Estados Unidos, França e Inglaterra, e seus satélites servis) tinham deixado a Rússia de joelhos.


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Talvez Xi Jinping visite a Arábia Saudita, para tratar da venda de petróleo saudita à China, que pagaria em Yuan, e não em Dólares, as transações financeiras por um meio que não o SWIFT, do qual a Rússia foi excluída logo no primeiro capítulo da novela das sanções otânicas ao país dos Romanofs. Estariam Rússia e China unidos para desbancar o Dólar como moeda hegemônica do comércio internacional, e secundados por Irã, Venezuela e países da antiga União Soviética? É a guerra que ora se desenrola na Ucrânia os prolegômenos de uma guerra que pedirá um Homero para cantá-la, invocando as musas?


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Os países do chamado Ocidente, inclusive os que geograficamente se situam no Oriente  estão, inegavelmente, a revelarem-se, não os paladinos da Liberdade, como assim ensina a propaganda, e desde tempos imemoriais, mas autoritários, daí muitos ocidentais indiferentes aos destinos de seus países, vistos, infelizmente, como infernos na Terra, o povo, confuso, desnorteado, a confundir os seus supostos representantes com a terra em que pisam. O governo da Austrália quer vir a proibir o cultivo de alimentos em propriedades particulares, seus donos a labutarem para garantir o próprio sustento, e não para comercializarem os produtos comestíveis que extraírem de suas terras. E mesmo que os comercializassem, que mal haveria? A quem interessa a proibição do cultivo caseiro de alimentos? Os grandes empresários do ramo alimentício, que veriam os australianos comendo-lhes nas palmas das mãos, cabisbaixos, constrangidos, humilhados, a delas tirarem migalhas, que lhes são postas diante dos olhos, para emasculá-los. Tal notícia me fez evocar duas reportagens, que há um bom par de anos eu li, que traziam notícia, uma, dos Estados Unidos, outra, do Brasil, aquela a informar que uma família americana foi proibida de cultivar, no jardim de sua casa, para consumo próprio, tomates, esta a falar da proposta de um político brasileiro que sugeria algo similar ao que o governo da terra dos cangurus e dos ornitorrincos ora propõe - se não me falha a memória, em um dos entes estaduais da região sul, lá pelas bandas da terra do Érico Veríssimo. E vem-me à mente o filme O Vingador do Futuro, de Paul Verhoeven, com Arnold Schwarzenegger a interpretar o protagonista. Neste filme, os marcianos, que são humanos, vivem à mercê da boa vontade de empresários cujas empresas monopolizam a distribuição de oxigênio.

Não sei se é a vida que imita a arte, se a arte que imita a vida.